quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Mula de Deus


I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pêlo fosco.
Pois há de rir-se de mim O PRECISO

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sangüinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.
Se me vires, SENHOR, perdoa ainda
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.


II

Há nojosos olhares sobre mim
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há de mim um sentir delicioso.
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.




III

Escrituras de pena (diria mais, de pêlos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma.
Quem há de ouvir umas canções de mula?
Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.


IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussuro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.
Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos
Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.


V

Ditoso amor de mula, Te ouvir murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo.
De espessura e de feridas.


Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula.

Este de mim, mas tão festivo e doce.
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.


VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.


Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.



VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pêlo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra.
Como as mulas de Deus.


VIII


Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada.

Essa sou eu.

Poeta e mula.

(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).


Hilda Hilst imagens: Arthur Braginski