domingo, 13 de outubro de 2013

Cantiga de enganar

   
  
francine van hove



  O mundo não vale o mundo,
                                             meu bem.
    Eu plantei um pé-de-sono,
    brotaram vinte roseiras.
    Se me cortei nelas todas
    e se todas me tingiram
    de um vago sangue jorrado
    ao capricho dos espinhos,
    não foi culpa de ninguém.
    O mundo,
                  meu bem,
                                não vale
    a pena, e a face serena
    vale a face torturada.
    Há muito aprendi a rir,
    de quê? de mim? ou de nada?
    O mundo, valer não vale.
    Tal como sombra no vale,
    a vida baixa... e se sobe
    algum som deste declive,
    não é grito de pastor
    convocando seu rebanho.
    Não é flauta, não é canto
    de amoroso desencanto.
    Não é suspiro de grilo,
    voz noturna de correntes,
    não é mãe chamando filho,
    não é silvo de serpentes
    esquecidas de morder
    como abstratas ao luar.
    Não é choro de criança
    para um homem se formar.
    Tampouco a respiração
    de soldados e de enfermos,
    de meninos internados
    ou de freiras em clausura.
    Não são grupos submergidos
    nas geleiras do entressono
    e que deixam desprender-se,
    menos que a simples palavra,
    menos que a folha no outono,
    a partícula sonora
    que a vida contém, e a morte
    contém, o mero registro
    de energia concentrada.
    Não é nem isto, nem nada.
    É som que precede a música,
    sobrante dos desencontros
    e dos encontros fortuitos,
    dos malencontros e das
    miragens que se condensam
    ou que se dissolvem noutras
    absurdas figurações.
    O mundo não tem sentido.
    O mundo e suas canções
    de timbre mais comovido
    estão calados, e a fala
    que de uma para outra sala
    ouvimos em certo instante
    é silêncio que faz eco
    e que volta a ser silêncio
    no negrume circundante.
    Silêncio: que quer dizer?
    Que diz a boca do mundo?
    Meu bem, o mundo é fechado,
    se não for antes vazio.
    O mundo é talvez: e é só.
    Talvez nem seja talvez.
    O mundo não vale a pena,
    mas a pena não existe.
    Meu bem, façamos de conta.
    de sofrer e de olvidar,
    de lembrar e de fruir,
    de escolher nossas lembranças
    e revertê-las, acaso
    se lembrem demais em nós.
    Façamos, meu bem, de conta
    - mas a conta não existe -
    que é tudo como se fosse,
    ou que, se fora, não era.
    Meu bem, usemos palavras.
    façamos mundos: idéias.
    Deixemos o mundo aos outros
    já que o querem gastar.
    Meu bem, sejamos fortíssimos
    - mas a força não existe -
    e na mais pura mentira
    do mundo que se desmente,
    recortemos nossa imagem,
    mais ilusória que tudo,
    pois haverá maior falso
    que imaginar-se alguém vivo,
    como se um sonho pudesse
    dar-nos o gosto do sonho?
    Mas o sonho não existe.
    Meu bem, assim acordados,
    assim lúcidos, severos,
    ou assim abandonados,
    deixando-nos à deriva
    levar na palma do tempo
    - mas o tempo não existe -,
    sejamos como se fôramos
    num mundo que fosse: o Mundo.


  Carlos Drummond de Andrade, in "Claro Enigma"