terça-feira, 1 de outubro de 2013
2. Além do Bem e do Mal
Como poderia uma coisa ter sua origem em seu contrário? Por exemplo, a verdade no erro? A vontade de atingir a verdade na vontade de atingir o falso? A ação desinteressada no egoísmo? A pura e radiante contemplação ascética do sábio no charco da concupiscência?
Tal origem é impossível; quem o imagina é um insensato, é ainda algo pior; a coisas de um valor supremo têm de ter outra origem própria; é impossível derivá-las deste mundo miserável, passageiro, sedutor e enganador, deste labirinto de loucuras e de cupidez. No seio do ser, do imperecedouro, do deus escondido, da “coisa in se”, aí está sua origem e em nenhuma outra parte. Este método de julgar nos apresenta o preconceito típico que revelam os metafísicos de todos os tempos; este método de apreciar forma o segundo plano de todos os seus procedimentos lógicos; partem deste ponto, de sua “fé”, tratando de chegar ao “conhecimento”, ao que chamam “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença na antítese dos valores.
Nem ainda aos mais prudentes se lhes ocorreu duvidar das origens, onde a dúvida era mais necessária; nem até aos que se haviam proposto de omnibus dubitandum. Em primeiro lugar, é lícito duvidar se as antíteses existem, e, em segundo lugar, também duvidar se a avaliação vulgar e a antítese de valores, nas quais imprimiram sua marca os metafísicos, não serão talvez uma mera avaliação, meras perspectivas provisórias, procedentes provavelmente de algum ângulo, talvez de baixo – “perspectivas de rã”, para usarmos uma expressão corriqueira entre pintores.
Apesar de todos os valores, o valor da verdade, do verdadeiro, do desinteresse, poderia, contudo, suceder que fosse necessário atribuir à aparência, à vontade do erro, ao interesse e à cupidez de um valor superior e mais fundado e mais útil para toda a vida. Até poderia suceder que o que constitui o valor daquelas coisas boas e veneradas consistisse em serem elas insidiosamente relacionadas, enlaçadas e alinhavadas com as coisas más e aparentemente contrárias, as quais se identificam em essência.
Talvez! Mas, quem cuida de uns “talvezes” tão perigosos? Para que isso suceda é preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham inclinações e gostos diametralmente opostos aos atuais. Filósofos do perigoso “talvez” em todos os sentidos. E falando seriamente parece-me que os vejo surgir.
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal
– tradução: Mário Ferreira dos Santos, Editora Vozes