sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Mas que tempo é esse?
Saí do cinema pensando: é preciso estar atento e forte, colega, a idade Média está de volta.
Discretamente, todo dia, de muitas formas estamos sendo bombardeados por mensagens tipo: não saia da linha, não cometa nenhuma transgressão, não se apaixone. Caso contrário, você será punido por isso. O vírus da Aids materializou nas cabeças burras aquela velha suspeita de que toda a nudez, um dia, seria inevitavelmente castigada. O que confirma a culposa lenga-lenga judaico-cristã de que este planeta não passa mesmo de um sofrido vale de lágrimas, onde todo prazer é sinônimo de pecado. Para quem acompanhou a luta das minorias nos anos 60 e 70, resta um espanto no ar: o que está acontecendo? É um retrocesso? Foi tudo inútil? Como se entrássemos coletivamente numa máquina do tempo moral e mental, para negar a História e ignorar todos aqueles vislumbres de felicidade individual conquistados nas últimas décadas, tentar ser feliz agora, saindo fora do esquema, é crime. Homossexuais, mulheres independentes, homens descasados, rebeldes de todo tipo, artistas, loucos mansos e varridos: a nova moral está no seu encalço.
A neocaretice está solta pelas ruas. Ela mora no apartamento ao lado, na casa da esquina e anda muito preocupada com a possibilidade de Jocasta e Édipo consumarem seu colorido incesto às oito da noite. Ela quer que o sexo que não se destine exclusivamente à procriação seja varrido da face da Terra. Ela sorri amável no elevador, dá bons-dias, boas-tardes, boas-noites, depois fica prestando atenção na sua vida para ver se você está andando direitinho dentro da linha. E se não estiver, tome cuidado, porque de alguma forma você pode ser punido. Despejo, desemprego – você sabe, essas pequenas tragédias que acontecem com quem ainda é capaz de não só acreditar em um pouco de prazer, mas até de lutar por isso. Embora, concordo, ninguém saiba mais direito o que seria “o prazer” a estas alturas da década de 80.
Quanto a nós, meio gauches, meio bandidos, dinossauros sobreviventes daquele tempo em que tudo parecia que ia mudar – não resta muito mais a fazer senão resistir. Movidos, no mínimo, pela curiosidade de onde vai dar tudo isso. E sempre se pode cantarolar baixinho aquele velho blues (Milagres) de Cazuza, que diz assim: “Mas que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver?”.
Caio Fernando Abreu
OESP – Caderno 2 – 20 janeiro de 1988