sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Alcoólicas


a

Goffredo da Silva Telles Júnior
Ignacio da Silva Telles
José Aristodemo Pinotti 

pelas águas intensas da amizade


 Drink we till we prove more, not lesse, then men, 
And turn not beasts, but Angels.
.. and forget to dy.

Richard Crashaw (poet e saint)


I

a Jamil Snege


É crua a vida. Alça de tripa e metal. 
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me 
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, meu casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é liquída


II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussuras: ah, a vida é liquída


III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida 
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estiola galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaicagem
Se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa. 

Ah, o todo se dignifica quando a vida é liquída.


IV

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me 
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de acuçena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.



V

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Ama-me.
Embriagada. Intedita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida


VI

Vem, senhora, estou só, me diz a Vida.
Enquanto te demoras nos textos eloquentes
Aqueles onde meditas a carne, essa coisa
Que geme sofre e morre, ficam vazios os copos
Fica em repouso a bebida, e tu sabes que ela é mais viva
Enquanto escorre. Se te demoras, começas a pensar 
Em tudo que se evola, e cantarás: como é triste
O poente. E a casa como é antiga. Já vês
Que te fazes banal na rima e na medida.

Corre. O casaco e o coturno estão em seus lugares.
Carminadas e altas, vamos rever as ruas
E como dizia o Rosa: os olhos nas nonadas.
Como tu dizes sempre: os olhos no absurdo.


Vem. Liquidifica o mundo



VII

Mandíbulas. Espáduas. Frente e avesso.
A Vida ressoa o coturno na calçada.
Estou mais do que viva: embriagada.
Bêbados e loucos é que repensam a carne o corpo
Vastidão e cinzas. Conceitos e palavras.
Como convém a bêbados grito o inarticulado
A garganta candente, devassada.
Alguns se ofendem. As caras são paredes. Deitam-me.
A noite é um infinito que se afasta. Funil. Galáxia.
Líquida e bemaventurada, sobrevoo. Eu, e o casaco rosso
Que não tenho, mas que a cada noite recrio
Sobre a espádua.



VIII

O casaco rosso me espia. A lã
Desfazida por maus tratos
É gasta e rugosa nas axilas.
A frente revela nódoas vivas
Irregulares, distintas
Porque quando arranco os coturnos 
Na alvorada, ou quando os coloco rápida
Ao crepúsculo, caio sempre de bruços.
A Vida é que me põe em pé. E a sede.
E a saliva. A língua procura aquele gosto
Aquele seco dourado, e acaricia os lábios
Babando impudente no casaco.

É bom e manso o meu casaco rosso.
Às vezes grita: ah, se te lembrasses de mim
Quando prolixa. Lava-me, Hilda.



IX

Se um dia te afastares de mim, Vida - o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida -
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriagues da via manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
Estilhaça a tua própria medida


Hilda Hilst
Imagens: Vicente Romero