sábado, 31 de agosto de 2013

Olhos azuis cabelos pretos


Ela diz:  -  Eu não conheço você. Ninguém pode conhecê-lo, pôr-se em seu lugarvocê não tem lugarnão sabe onde encontrar um lugar. E é por isso que o amo e que você está perdido.

Ela fecha os olhos. Diz: - Nesta casa à beira-mar você está perdido como um povo sem descendência. No café, vi que você desejaria ter essa fama, essa posição, fiquei com você em um momento da minha vida — no coração de minha juventude — em que eu era como se aquele povo sem rumo fosse também o meu.

Detém-se, olha-o, depois diz que nas primeiras horas do encontro de ambos soubera que se pusera a amá-lo como se sabe que se começou a morrer. Ele pergunta se ela está acostumada com a morte. Ela diz que pensa que sim, que é a coisa com que se habitua melhor. Diz: - Depois, no fim da noite, já era tarde demais para recusar. Sempre foi tarde demais para não mais amá-lo. O dinheiro, você pensava, devia confirmar a morte, e me pagou para isso, para não o amar. E eu, através de todos esses estratagemas, vi apenas que você ainda era muito jovem e suas histórias de dinheiro não serviram para nada.

Ele quer saber sobre o homem da cidade. Ela diz: Eles se vêem durante a tarde em um quarto do hotel
que ele alugou por mês para que se encontrem durante o dia. Ficam juntos no quarto até a hora do contrato. Às vezes ele não vem e ela dorme, é esse o motivo dos atrasos, geralmente é ele que a acorda, se ele não está, ela não acorda. Às vezes também, ao sair do quarto, ela vai diretamente para o hotel e fica ali até a noite do dia seguinte.

Diz que pediu demissão do cargo de professora. Ele protesta. Idiota, louca, diz. Não vou mantê-la, não conte com isso. Ela ri muito e ele acaba rindo com ela. Ele está deitado à seu lado. Ela está sob a seda preta, de olhos fechados. Ela acaricia os olhos, as órbitas, a boca, as angulosidades do rosto, a testa. Procura às cegas um outro rosto, através da pele, dos ossos. Fala. Diz que este amor é tão terrível de viver como a imensidão indiana. E grita. Tira as mãos do rosto do homem do quarto como se ele a
houvesse queimado, vira as costas para ele, vai se atirar contra a parede do mar. E grita. Soluça. Está diante da perda recém-descoberta de toda razão de viver.

A coisa chega com a brusquidão da morte. Ela chama por alguém em voz muito baixa, abafada, chama
como se estivesse em sua presença, como o faria a um morto, para além dos mares, dos continentes, com o nome de todos chama um único homem com a sonoridade central da vogal soluçante do Oriente, aquela saída das profundezas do Hotel das Rochas no fim daquele dia de verão.

Chora longe dele, deste homem, de fora de suas circunstâncias, aquém de toda história, ela chora a história que não existiu. O homem voltou a ser o homem do quarto. Está só. De início, quando ela gritou, não a olhou, levantou-se para ir embora, para fugir. Depois ouviu o nome. Então lentamente aproximou-se dela. Disse: -  É curioso, tento lembrar-me em seu lugar, como se fosse possível, parece que posso fazê-lo, reencontrar as circunstâncias, o lugar, as intenções. . . e ao mesmo tempo sei que é impossível porque... uma coisa dessas, tão terrível, seria extraordinário se eu tivesse esquecido.

E como se não tivesse falado. Ela permanece de costas, o rosto para a parede, diz-lhe para ir embora. Manda-o entrar na casa, deixá-la sozinha. Fica no quarto um dia inteiro. Quando ele volta, ela está no umbral da porta aberta, vestida de branco.

Ela sorri, diz: -  É um assombro.

Ele pergunta o que é um assombro. Ela diz: - Nossa história particular.

Ele pergunta o que houve com ela. Ela responde que estava acariciando seu rosto, mas que, sem dúvida, sem se dar conta, sem que o soubesse, havia procurado outro rosto além do seu. Que repentinamente aquele outro rosto havia estado em suas mãos.

Os motivos que ela dá, ele não retém. Ela diz:  - Não compreendo, foi uma espécie de aparição, foi por
isso que tive tanto medo. Ele diz que estão como se tivessem sido aprisionados juntos em um livro e que com o fim do livro serão devolvidos à diluição da cidade, novamente separados.


Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos