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Richard S Johnson |
As mais mal amadas coisas são as que facilmente
conseguimos quando não houve medo de falhar
e nos foi poupado o esforço da criação. Ou quando
pudemos ver várias luzes ao fundo do túnel.
As coisas mal amadas são quase sempre as mais jovens.
As que ainda não adquirimos nem abandonamos já. No
entanto, nas mal amadas coisas, uma parte poderia ser
amável, estimável, mas por essa falta responde a nossa pressa
e a nossa impaciência, a rapidez quente que Nero considerou
a de um pobre leão diante de uma horda de cristãos.
As coisas bem amadas têm milhões de gotas de sangue,
tantas como as coisas que nós amamos menos, e isso
é o mais extraordinário. E as coisas que menos amamos
podem ser de outros as coisas mais amadas, isto é,
talvez não haja coisas mal nem bem amadas mas
somente gente que ama mal ou bem as coisas. Gente
que às vezes se esforça para retirar de si mesma amor
com a mesma improbabilidade da atmosfera dar um fruto.
E gente que, sem esforço, toca na pele e no coração das
coisas. Todas as coisas. Duras, ruins, leves, distantes,
imponderáveis, belas. Ou coisas apenas. Aquelas coisas
que são coisas, completamente coisas. Nem monstruosas
nem estupendas. Não aquelas coisas que falam connosco,
as que vivem ao ritmo da nossa pulsação, mas as mais
reais e simples e inevitáveis coisas. As que têm
todas as possibilidades de ser coisas mal amadas,
as que não obrigam ao amor, as que não reivindicam
o mínimo carinho. Aquelas sobre as quais a lua não deita
uma toalha de prata, com as quais ninguém sonha,
pelas quais os herdeiros não brigam. As menos
interessantes coisas, afinal. As que são fáceis
de dispensar. As que indiferem. Mas também
aquelas que todos os dias mais perto estão de nós,
tão úteis, tão nossas, tão vulgarmente assim,
que é assim que as vemos, sem ao menos vermos
a falta que nos fazem. As coisas que obrigam
um poeta a escrever coisas como esta.
Joaquim Pessoa in "Vou-me embora de mim"
Joaquim Pessoa in "Vou-me embora de mim"