quinta-feira, 30 de maio de 2013

Morte e Vida Severina (Trecho)



Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc


—— De sua formosura 
já venho dizer: 
é um menino magro, 
de muito peso não é, 
mas tem o peso de homem, 
de obra de ventre de mulher. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é uma criança pálida, 
é uma criança franzina, 
mas tem a marca de homem, 
marca de humana oficina. 

—— Sua formosura 
deixai-me que cante: 
é um menino guenzo 
como todos os desses mangues, 
mas a máquina de homem 
já bate nele, incessante. 

—— Sua formosura 
eis aqui descrita: 
é uma criança pequena, 
enclenque e setemesinha, 
mas as mãos que criam coisas 
nas suas já se adivinha. 


—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é belo como o coqueiro 
que vence a areia marinha. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
belo como o avelós 
contra o Agreste de cinza. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
belo como a palmatória 
na caatinga sem saliva. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é tão belo como um sim 
numa sala negativa. 


—— é tão belo como a soca 
que o canavial multiplica. 

—— Belo porque é uma porta 
abrindo-se em mais saídas. 

—— Belo como a última onda 
que o fim do mar sempre adia. 

—— é tão belo como as ondas 
em sua adição infinita. 


—— Belo porque tem do novo 
a surpresa e a alegria. 

—— Belo como a coisa nova 
na prateleira até então vazia. 

—— Como qualquer coisa nova 
inaugurando o seu dia. 

—— Ou como o caderno novo 
quando a gente o principia. 


—— E belo porque o novo 
todo o velho contagia. 

—— Belo porque corrompe 
com sangue novo a anemia. 

—— Infecciona a miséria 
com vida nova e sadia. 

—— Com oásis, o deserto, 
com ventos, a calmaria.


João Cabral de Melo Neto