Por várias vezes ela acordará desorientada, inquieta. O que pergunta a cada noite é que casa é esta. Ele não responde à pergunta. Diz que é noite, antes do inverno, que ainda é outono.
Ela pergunta: O que é que se ouve?
Ele diz: O mar, ali, atrás da parede do quarto. E eu sou aquele que você encontrou uma noite deste verão no café à beira-mar. E depois aquele que deu dinheiro. Ela sabe, mas não se lembra bem por que está ali.
Olha para ele, diz: Você é aquele que estava desesperado. Você não acha que mal nos lembramos? Ele, de repente, também acha que mal se lembram, que quase não lembram. A propósito, desesperado por quê? Eles se surpreendem de repente a se entreolharem. E de repente a se verem. Vêem-se até a suspensão da palavra na página, até esse golpe nos olhos que fogem e que se fecham.
Ela quer ouvir como ele amava esse amante perdido. Ele responde: Além das forças, além da vida. Ela quer ouvir novamente. Ele torna a dizer. Ela volta a cobrir o rosto com a seda preta, ele se deita perto dela. Nem uma fração dos corpos se toca. A imobilidade é comum.
Ela repete com a voz dele: Além das forças, além da vida.
Acontece brutalmente, com a mesma voz, a mesma lentidão. Ele diz:
— Ele me olhou. Percebeu minha presença atrás da janela do vestíbulo e olhou várias vezes para mim.
Ela está sentada sob a luz amarela. Com os olhos nele, escuta. Não sabe do que está falando, nada. Ele prossegue:
— Ele foi ao encontro de uma mulher, a mulher lhe fez um sinal com a mão, para segui-la. Foi então que vi que ele não queria deixar o vestíbulo. Ela o tomou pelo braço e o levou. Um homem nunca teria feito isso.
A voz mudou. A lentidão desapareceu. Não é mais o mesmo homem que fala. Ele grita, diz que não suporta que ela o olhe daquela maneira. Ela pára de olhá-lo. Ele grita, não quer que ela se deite, quer que fique de pé. Ela só sairá quando tiver ouvido a história.
Ele continua a história. Não vira o rosto da mulher com quem ele se encontrara, ela estava voltada para o jovem estrangeiro, ela, ela não sabia que alguém estava ali, olhando-os. Usava um vestido claro, sim, é isso, branco. Pergunta se ela está ouvindo. Ela está ouvindo, ele pode ficar tranqüilo.
Ele continua a história.
— Ela o chamou justamente porque ele me olhava com tanta insistência. Deve ter gritado para fazê-lo afastar-se de mim. De repente fomos separados. Os dois desapareceram pela porta do vestíbulo que dá para a praia.
Ele se esforça para não chorar. Chora. Diz:
— Fui procurá-lo na praia, não sabia mais o que fazia. Depois voltei ao parque. Esperei até o cair da noite. Fui embora quando apagaram as luzes do vestíbulo. Para aquele café à beira-mar. Nossas histórias geralmente são curtas, nunca experimentei algo assim. A imagem está aqui — ele mostra a cabeça, o coração —, fixa. Tranquei-me nesta casa com você para não esquecê-lo. Agora você sabe a verdade.
Ela diz: — É terrível essa história.
Ele fala da sua beleza. Com os olhos fechados ainda é capaz de ver a imagem em sua perfeição. Vê a luz vermelha do crepúsculo e os olhos terríveis de tão azuis àquela luz. Revê a tez branca dos amantes. Os cabelos pretos. Alguém gritara em um determinado momento, mas naquele instante, do grito, ele ainda não o vira. Não sabe se foi ele quem gritou. Nem mesmo tem certeza de que fora um homem que gritara. Estava ocupado olhando as pessoas reunidas no vestíbulo. E de repente houvera o grito. Não, pensando nisso, o grito não viera do vestíbulo e sim de muito mais longe, estava carregado de toda espécie de ecos, de passado, de desejo. Deve ter sido um estrangeiro quem gritou, um jovem, para se divertir e, talvez, assustar. Depois a mulher o levara. Ele esquadrinhara a cidade e a praia, não o encontrara, como se a mulher o tivesse levado para longe.
Ela torna a perguntar: Por que o dinheiro?
Ele responde: Para pagar. Para dispor do seu tempo como decidi. Para mandá-la embora quando quiser. E, de antemão, saber que obedecerá. Para ouvir minhas histórias, as inventadas e as verdadeiras.
Ela diz: Também para dormir sobre o sexo inerte.
Ela termina a frase do livro: E também chorar ali, às vezes.
Ele pergunta para que serve a seda preta. Ela responde:
— A seda preta, como o capuz preto, para enfiar a cabeça dos condenados à morte.
A audição da leitura do livro, diz o ator, deveria ser sempre igual. Quando a leitura se desse, entre os silêncios, os atores deveriam manter-se presos a ela, quase sem respirar, imobilizados nela, como se através da simplicidade das palavras, progressivamente, sempre houvesse algo mais a compreender.
Os atores olhariam para o homem da história, algumas vezes olhariam para o público. As vezes também olhariam para a mulher da história, mas nunca casualmente. Esse não-olhar dos atores para a mulher da história teria que ser percebido. Não se mostraria nada do que se passasse entre o homem e a mulher, nada seria representado. Então, a leitura do livro seria uma espécie de teatro da história.
Nenhuma emoção particular deveria ser marcada nessa ou naquela passagem da leitura. Nenhum gesto, também. Simplesmente, a emoção diante da revelação da palavra. Os homens estariam de branco. A mulher, nua. A ideia de que estaria vestida com a roupa preta foi abandonada.
Ela diz que faz parte das pessoas que caminham ao longo da praia à noite.
Ele esboça um leve movimento de recuo, como se duvidasse do que ela está dizendo. E depois diz que acredita nela. Pergunta: Além dessas caminhadas, desse amor, quem é ela? Além das caminhadas, além de sua presença no quarto, quem? Ela põe a seda preta no rosto. Diz: Sou escritora. Ele não sabe se ela está rindo. Não pergunta. Ficam calados, ouvem-se imersos na mesma distração. Perguntam sem esperar resposta. Falam sozinhos. Ele espera que ela fale. Gosta da voz dela, diz, nem sempre escuta quando falam, mas ela, sim, sempre ouve sua voz. Foi por causa de sua voz que pediu que ela viesse para o quarto.
Ela diz que, um dia, escreverá um livro sobre o quarto, acha que é um lugar como por equívoco, teoricamente inabitável, infernal, um palco fechado.
Ele diz que tirou os móveis, as cadeiras, a cama, os objetos de uso pessoal, porque desconfiava, não a conhecia, ela poderia ter roubado. Diz também que agora é o contrário, sempre tem medo de que ela vá embora enquanto está dormindo. Com ela trancada em sua companhia no quarto, não está inteiramente separado dele, do amante de olhos azuis cabelos pretos. Acha que é neste quarto, com esta iluminação de teatro, que precisa procurar o início desse amor, muito anterior a ela, desde os verões da infância vividos como uma punição. Não dá explicações.
Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos