terça-feira, 23 de abril de 2013

Olhos azuis cabelos pretos (2)


Tarde em meio à noite que se segue àquele crepúsculo,  a beleza do dia tendo desaparecido violentamente como um golpe do destino, eles se encontram.
Quando ele entra no café à beira-mar ela já está ali, com algumas pessoas. Ele não a reconhece. Só poderia reconhecê-la se tivesse chegado ao café acompanhada pelo jovem estrangeiro de olhos azuis e cabelo preto. Sua ausência faz com que permaneça desconhecida.
Ele se senta a uma mesa. Mais do que ele, ela jamais o viu. Ela o olha. É inevitável. Está só, e belo e e extenuado de estar só. Tão só e belo como qualquer pessoa na hora de morrer. Chora. Ele é tão desconhecido para ela como se nunca tivesse nascido.
Ela deixa as pessoas com quem está. Vai até a mesa daquele que acaba de entrar e está chorando. Senta-se diante dele. Ele a olha.
Dela ele nada vê, nem que suas mãos estão inertes sobre a mesa. Nem o sorriso desfeito. Nem que está tremendo.Que está com frio.
Ela nunca o vira nas ruas da cidade. Pergunta-lhe o que tem. Ele diz que não tem nada. Nada. Para ela não se preocupar. A doçura da voz que repentinamente rasga a alma e faria acreditar que.
Ele não consegue reprimir o choro.
Ela diz: Gostaria de impedi-lo de chorar. Ela chora. Ele não quer nada realmente. Não a escuta.
Ela pergunta se ele quer morrer, se é isso que sente, vontade de morrer, talvez ela possa ajudar. Gostaria que falasse novamente. Ele responde que não, nada, para não ligar. Ela não pode agir de outra forma, fala com ele.
- Você está aqui para não voltar para casa.
- É isso.
- Em casa você está só.
- Só sim. Ele procura o que dizer. Pergunta onde ela mora. Ela mora num hotel que fica numa das  rua que dão para a praia.
Ele não ouve. Não ouviu. Para de chorar. Diz que está muito aflito porque perdeu a pista de alguém que gostaria de rever. Acrescenta que tende a sofrer desses tipos de coisa, essas tristezas mortais.
Diz: fique comigo.
Ela fica.Ele parece um pouco incomodado pelo silêncio. Pergunta, acha-se obrigado a falar, se ela gosta de ópera. Ela responde que não gosta muito de óperas, mas da Callas, sim, muito. Como não gostar dela? Fala tão devagar como se houvesse perdido a memória. Diz que esquece, que há também Verdi, e depois, também, Monteverdi. Você percebeu, é desses que se gosta quando não se gosta muito de ópera - acrescenta -  quando não se gosta de mais nada.
Ele ouviu. Vai chorar novamente. Seus lábios tremem. Os nomes de Verdi e Monteverdi faz ambos chorarem. Ela diz que também vagueia pelos cafés à noite quando as noites são tão longas e quentes. quando toda a cidade está fora é impossível ficar dentro de um quarto. Porque ela também está só? Sim.
Ele chora. Não para. E exatamente isso, chorar. ele não fala de mais nada. Não falam mais, nem um, nem outro.
Ficam ai até o café fechar.
Ele está de frente para o mar, e ela, do outro lado da mesa, diante dele. Durante duas horas ela o olha sem o ver. De vez em quando se lembram, sorriem através das lágrimas. Depois novamente esquecem.
Ele pergunta se ela é prostituta. Ela não se espanta. Também ri, diz:
- De certa maneira, mas não cobro.
Ele também pensou que ela fosse um dos empregados do café. Não. Ela brinca com uma chave para não olhar para ele.
Diz: Sou atriz, você me conhece. Ele não pede desculpas por não conhecê-la, não fala nada. É um homem que não acredita em mais nada do que se diz. Deve achar que ela o compreende.
O café havia fechado. Eles se viram do lado de fora. Ele olhara para o céu ao nível do mar. No horizonte ainda restavam vestígios do crepúsculo. Ele falara do verão, dessa noite de suavidade excepcional. Ela parecera não saber do que se tratava. Dissera: Fecham porque estamos chorando.
Ela o leva a um bar mais para o interior, era uma estrada nacional. E ficam ali até raiar o dia. E ali que ele diz estar atravessando um momento difícil. Ela diz: A sua última hora. Não sorri. Ele diz que sim, que é isso, que achara, que ainda acha. Sorri um sorriso forçado. Diz ainda que procurara pela cidade alguém que queria rever, que é por isso que estava chorando, alguém que não conhecia, que vira por acaso nessa mesma noite e era aquele por quem sempre esperava e queria rever custasse o que custasse, mesmo pagando com a própria vida. Que ele era assim. Ela diz: Que coincidência. Acrescenta:
— Foi por isso que o abordei, acho, por causa desse desespero.
Sorri, confusa por usar essa palavra. Ele não entende. E a olha pela primeira vez. Diz: Você está chorando.
Ele olha melhor. Diz:
— Sua pele é tão branca, parece que acabou de chegar à beira-mar.
Ela responde que sua pele não fixa o sol, que isso existe — está prestes a dizer alguma outra coisa que não diz. Ele a olha atentamente, esquece mesmo de vê-la para melhor recordar. Diz:
— É estranho, é como se já a tivesse encontrado.
Ela pensa, é sua vez de olhá-lo, procura onde e quando isso poderia ter sido possível. Diz:
— Não. Nunca o vi antes desta noite.
Ele volta à pele branca e de tal maneira que a pele branca poderia ser um pretexto para buscar o porquê das lágrimas.
Mas não. Diz:
— E sempre um pouco... dá sempre um pouco de medo, olhos tão azuis quanto os seus..., mas talvez seja porque seus cabelos são tão pretos...
Ela deve estar habituada a que lhe falem de seus olhos.
Responde:
— Cabelos pretos e cabelos louros dão um azul dos olhos diferente, como se viesse dos cabelos a cor dos olhos. Cabelos pretos tornam os olhos azul-anil, meio trágicos também, é verdade, enquanto os cabelos louros deixam os olhos azuis mais amarelos, mais cinzentos, que não amedrontam.
Ela certamente diz o que evitou dizer há pouco:
— Conheci alguém que tinha essa espécie de azul nos olhos, não se percebia o centro do olhar, de onde vinha, como se o azul inteiro olhasse.
De repente ele a vê. Vê que está descrevendo os próprios olhos.
Ela está chorando, aconteceu brutalmente, soluços muito fortes, que se entrechocam, ela não tem a força de chorar.
Diz:
— Desculpe, é como se tivesse cometido um crime, eu queria morrer.
Ele tem medo que ela também o deixe, que desapareça na cidade. Mas não, ela está chorando à sua frente, os olhos revelados, afogados em lágrimas. Olhos que a desnudam. Ele segura suas mãos, encosta-as no rosto. Pergunta se são os olhos azuis que a fazem chorar. Ela responde que sim, que é isso, que se pode dizer isso.
Deixa que ele lhe segure as mãos. Ele pergunta quando foi. Hoje. Ele beija as mãos como faria com o rosto, a boca. Diz que ela tem o cheiro leve e doce da fumaça. Ela lhe oferece a boca para beijar. Diz-lhe para beijá-la, a ele, àquele desconhecido, ela diz: Você beija seu corpo nu, sua boca, toda a sua pele, os olhos.
Choram até de manhã a tristeza mortal da noite de verão.

Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos