sexta-feira, 19 de abril de 2013
O Anticristo
O Deus antigo, inteiramente "espírito", inteiramente sumo sacerdote, plena perfeição, passeia aprazivelmente em seu jardim; contudo, aborrece-se. Também os deuses lutam em vão contra o tédio. Que faz ele? Inventa o homem - o homem distrai... Mas eis que também o homem se aborrece. A misericórdia de Deus para com a única indigência, que todos os paraísos em si têm, não conhece limites; criou então outros animais. Primeiro equívoco de Deus: o homem não achou os animais divertidos - dominou-os, nem sequer quis ser "animal". Deus criou, pois, a mulher. E, efetivamente cessou o tédio, mas também muitas outras coisas! A mulher foi o segundo erro de Deus. "a mulher é, por essência, uma serpente, Eva". Todo o sacerdote sabe disso; "pela mulher vem todo o mal ao mundo" - também isso o sabe o sacerdote. "Logo, a ciência também vem dela"... Foi só pela mulher que o homem aprendeu a saborear a árvore do conhecimento. Que aconteceu? Um pânico de morte se apoderou do Deus antigo. O próprio homem tornara-se o seu maior erro, ele criara um rival, a ciência iguala a Deus: se o homem se torna científico, é o fim dos sacerdotes e dos deuses! Moral: a ciência é a interdição em si, só ela é proibida. A ciência é o primeiro pecado, o germe de todos os pecados, o pecado original. Eis a única moral. "Não deves conhecer": o resto segue-se daí. O pânico mortal de Deus não o impediu de ser astuto. Como se defender contra a ciência? Eis o seu problema principal durante muito tempo. Resposta: expulse o homem do paraíso! A felicidade, o ócio evoca pensamentos - todos os pensamentos são maus pensamentos... O homem não deve pensar: e o "sacerdote em si" inventa a indigência, a morte, o perigo mortal da gravidez, toda espécie de miséria, a velhice, a fadiga, sobretudo a doença - simples meios na luta contra as ciências! A indigência não permite ao homem pensar... E, apesar de tudo, que coisa tremenda! A obra do conhecimento acumula-se, sobe ao céu, anuncia o crepúsculo dos deuses - que fazer? O Deus antigo inventa a guerra, separa os povos, faz com que os homens se aniquilem entre si (os sacerdotes tiveram sempre necessidade da guerra...) A guerra é, entre outras, um grande desmancha-prazeres da ciência! Incrível! O conhecimento, a emancipação relativa ao sacerdote, aumenta apesar das guerras. E uma última decisão ocorre ao Deus antigo: "O homem tornou-se científico, de nada serve, há que afogá-lo!"...
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, af. 48(trecho)