terça-feira, 9 de abril de 2013



Ah, meu amor, as coisas são muito delicadas. A gente pisa nelas com uma pata humana demais, com sentimentos demais. Só a delicadeza da inocência ou só a delicadeza dos iniciados é que sente o seu gosto quase nulo. Eu antes precisava de tempero para tudo, e era assim que eu pulava por cima da coisa e sentia o gosto do tempero.
Eu não podia sentir o gosto da batata, pois a batata é quase a matéria da terra; a batata é tão delicada que - por minha incapacidade de viver no plano de delicadeza do gosto apenas terroso da batata - eu punha minha pata humana em cima dela e quebrava a sua delicadeza de coisa viva. Porque o material vivo é muito inocente.
E a minha própria inocência? Ela me dói. Porque também sei que, em plano somente humano, inocência é ter a crueldade que a barata tem consigo própria ao estar lentamente morrendo sem dor; ultrapassar a dor é a pior crueldade. E eu tenho medo disso, eu que sou extremamente moral. Mas agora sei que tenho de ter uma coragem muito maior: a de ter uma outra moral, tão isenta que eu mesma não a entenda e que me assuste.
- Ah, lembrei-me de ti, que és o mais antigo na minha memória. Revejo-te unindo os fios elétricos para consertar a tomada de luz, cuidando do pólo positivo e negativo, e tratando as coisas com delicadeza.
Eu não sabia que aprendi tanto contigo. Que aprendi contigo? Aprendi a olhar uma pessoa trançando fios elétricos. Aprendi a ver-te uma vez consertar uma cadeira quebrada. Tua energia física era a tua energia mais delicada.
- Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados, O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio d’água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no voo dos mosquitos. E o presente disponível. E minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa.
Eu não sabia ver que aquilo era amor delicado. E me parecia o tédio. Era na verdade o tédio. Era uma procura de alguém para brincar, o desejo de aprofundar o ar, de entrar em contato mais profundo com o ar, o ar que não é para ser aprofundado, que foi destinado a ficar assim mesmo suspenso.
Não sei, lembro-me de que era feriado. Ah, como então eu queria a dor: ela me distrairia daquele grande vácuo divino que eu tinha contigo. Eu, a deusa repousando; tu, no Olimpo, O grande bocejo da felicidade? A distância se seguindo à distância, e à outra distância e mais outra - a fartura de espaço que o feriado tem. Aquele desenrolar-se de calma energia, que eu nem entendia. Aquele beijo já sem sede na testa distraída do homem amado repousando, o beijo pensativo no homem já amado. Era feriado nacional. As bandeiras hasteadas.
Mas a noite caindo. E eu não suportava a transformação lenta de algo que lentamente se transforma no mesmo algo, apenas acrescentado de mais uma gota idêntica de tempo. Lembro-me que eu te disse: - Estou com um pouquinho de enjôo de estômago - disse eu respirando com alguma saciedade. - Que faremos hoje de noite? - Nada - respondeste tão mais sábio que eu -, nada, é feriado - disse o homem que era delicado com as coisas e com o tempo.
O tédio profundo - como um grande amor - nos unia. E na manhã seguinte, de manhã bem cedo, o mundo se me dava. As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num hospital em que os doentes ainda amanhecem vivos.
Mas tudo isso era fino demais para a minha pata humana. E eu, eu queria a beleza.
Mas agora tenho uma moral que prescinde da beleza.
Terei que dar com saudade adeus à beleza. Beleza me era um engodo suave, era o modo como eu, fraca e respeitosa, enfeitava a coisa para poder tolerar-lhe o núcleo.
Mas agora meu mundo é o da coisa que eu antes chamaria de feia ou monótona - e que já não me é feia nem monótona. Passei pelo roer a terra e pelo comer o chão, e passei por ter orgia nisso, e por sentir com horror moral que a terra roída por mim também sentia prazer. Minha orgia na verdade vinha de meu puritanismo: o prazer me ofendia, e da ofensa eu fazia prazer maior. No entanto este meu mundo de agora, eu antes o teria chamado de violento.
Porque é violenta a ausência de gosto da água, é violenta a ausência de cor de um pedaço de vidro. Uma violência que é tão mais violenta porque é neutra.
Meu mundo hoje está cru, é um mundo de uma grande dificuldade vital. Pois, mais do que a um astro, eu hoje quero a raiz grossa e preta dos astros, quero a fonte que sempre parece suja, e é suja, e que é sempre incompreensível.
É com dor que dou adeus mesmo à beleza de uma criança - quero o adulto que é mais primitivo e feio e mais seco e mais difícil, e que se tornou uma criança-semente que não se quebra com os dentes.
Ah, e quero ver se também já posso prescindir de cavalo bebendo água, o que é tão bonito. Também não quero a minha sensibilidade porque ela faz bonito; e poderei prescindir do céu se movendo em nuvens? e da flor? não quero o amor bonito. Não quero a meia-luz, não quero a cara bem-feita, não quero o expressivo. Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.
Nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.

Clarice Lispector, A paixão segundo G. H