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Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas de uma assassina de mim mesma.
O suor agora recomeçara, eu estava agora suada da cabeça aos pés, os dedos melados dos pés escorregavam dentro do chinelo, e a raiz de meus cabelos amolecia àquela coisa viscosa que era o meu suor novo, um suor que eu não conhecia e que tinha um cheiro igual ao que sai de uma terra ressecada às primeiras chuvas. Aquele suor profundo era no entanto o que me vivificava, eu estava nadando lenta no meu mais antigo caldo de cultura, o suor era planctum e pneuma e pablum vitae, eu estava sendo, eu estava me sendo.
Não, meu amor, não era bom como o que se chama bom. Era o que se chama ruim. Muito, muito ruim mesmo. Pois minha raiz, que só agora eu experimentava, tinha gosto de batata-tubérculo, misturada com a terra de onde fora arrancada. No entanto esse gosto ruim tinha uma estranha graça de vida que só posso entender se a sentir de novo e só posso explicar de novo sentindo.
Avancei mais um passo. Mas em vez de ir adiante, de repente vomitei o leite e o pão que havia comido de manhã ao café.
Toda sacudida pelo vômito violento, que não fora sequer precedido pelo aviso de uma náusea, desiludida comigo mesma, espantada com minha falta de força de cumprir o gesto que me parecia ser o único a reunir meu corpo à minha alma.
A despeito de mim, depois de vomitar, eu ficara serena, com a testa refrescada, e fisicamente tranqüila.
O que era pior: agora eu ia ter que comer a barata mas sem a ajuda da exaltação anterior, a exaltação que teria agido em mim como uma hipnose; eu havia vomitado a exaltação. E inesperadamente, depois da revolução que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples como uma menina. Teria que ser assim, como uma menina que estava sem querer alegre, que eu ia comer a massa da barata.
Então avancei.
Minha alegria e minha vergonha foi ao acordar do desmaio. Não, não fora desmaio. Fora mais uma vertigem, pois que eu continuava de pé, apoiando a mão no guarda-roupa. Uma vertigem que me fizera perder conta dos momentos e do tempo. Mas eu sabia, antes mesmo de pensar, que, enquanto me ausentara na vertigem, “alguma coisa se tinha feito».
Eu não queria pensar mas sabia. Tinha medo de sentir na boca aquilo que estava sentindo, tinha medo de passar a mão pelos lábios e perceber vestígios. E tinha medo de olhar para a barata - que agora devia ter menos massa branca sobre o dorso opaco...
Eu tinha vergonha de me ter tornado vertiginosa e inconsciente para fazer aquilo que nunca mais eu ia saber como tinha feito - pois antes de fazê-lo eu havia tirado de mim a participação. Eu não tinha querido “saber”.
Era assim então que se processava? “Não saber” - era assim então que o mais profundo acontecia? alguma coisa teria sempre, sempre, que estar aparentemente morta para que o vivo se processasse? eu tivera que não saber que estava viva? O segredo de jamais se escapar da vida maior era o de viver como um sonâmbulo? Ou viver como um sonâmbulo era o maior ato de confiança? o de fechar os olhos em vertigem, e jamais saber o que se fez.
Como uma transcendência. Transcendência, que é a lembrança do passado ou do presente ou do futuro. A transcendência era em mim o único modo como eu podia alcançar a coisa? Pois mesmo ao ter comido da barata, eu fizera por transcender o próprio ato de comê-la. E agora só me restava a vaga lembrança de um horror, só me ficara a idéia.
Até que a lembrança ficou tão forte que meu corpo gritou todo em si mesmo.
Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma - eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. “- - - porque não és nem frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca”, era Apocalipse segundo são João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o insípido do que eu comera - e eu cuspia.
O que era difícil: pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e ela continuava eu.
Só parei na minha fúria quando compreendi com surpresa que estava desfazendo tudo o que laboriosamente havia feito, quando compreendi que estava me renegando. E que, ai de mim, eu não estava à altura senão de minha própria vida.
Parei espantada, e meus olhos se encheram de lágrimas que só ardiam e não corriam. Acho que eu não me julgava sequer digna de que lágrimas corressem, faltava-me a primeira piedade por mim, a que permite chorar, e nas pupilas eu retinha em ardor as lágrimas que me salgavam e que eu não merecia que escorressem.
Mas, mesmo não escorrendo, as lágrimas de tal modo me serviam de companheiras e de tal modo me banhavam de comiseração, que fui abaixando uma cabeça consolada. E, como quem volta de uma viagem, voltei a me sentar quieta na cama.
Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real.
Mas beijar um leproso não é bondade sequer. É auto- realidade, é autovida - mesmo que isso também signifique a salvação do leproso. Mas é antes a própria salvação. O benefício maior do santo é para com ele mesmo, o que não importa: pois quando ele atinge a grande própria largueza, milhares de pessoas ficam alargadas pela sua largueza e dela vivem, e ele ama tanto os outros assim como ama o seu próprio terrível alargamento, ele ama seu alargamento com impiedade por si mesmo. O santo quer se purificar porque sente a necessidade de amar o neutro? de amar o que não é acréscimo, e de prescindir do bom e do bonito. A grande bondade do santo - é que para ele tudo é igual. O santo se queima até chegar ao amor do neutro. Ele precisa disso para ele próprio.
Entendi então que, de qualquer modo, viver é uma gran de bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma cela. Viver é dádiva tão grande que milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida.
- Dói em ti que a bondade do Deus seja neutramente contínua e continuamente neutra? Mas o que eu antes queria como milagre, o que eu chamava de milagre, era na verdade um desejo de descontinuidade e de interrupção, o desejo de uma anomalia: eu chamava de milagre exatamente o momento em que o verdadeiro milagre contínuo do processo se interrompia. Mas a bondade neutra do Deus é ainda mais apelável do que se não fosse neutra: é só ir e ter, é só pedir e ter.
E também o milagre se pede, e se tem, pois a continuidade tem interstícios que não a descontinuam, o milagre é a nota que fica entre duas notas de música, é o número que fica entre o número um e o número dois. É só precisar e ter. A fé - é saber que se pode ir e comer o milagre. A fome, esta é que é em si mesma a fé - e ter necessidade é a minha garantia de que sempre me será dado. A necessidade é o meu guia.
Não. Eu não precisava ter tido a coragem de comer a massa da barata. Pois me faltava a humildade dos santos: eu havia dado ao ato de coma-la um sentido de “máximo”. Mas a vida é dividida em qualidades e espécies, e a lei é que a barata só será amada e comida por outra barata; e que uma mulher, na hora do amor por um homem, essa mulher está vivendo a sua própria espécie. Entendi que eu já havia feito o equivalente de viver a massa da barata - pois a lei é que eu viva com a matéria de uma pessoa e não de uma barata.
Entendi que, botando na minha boca a massa da barata, eu não estava me despojando como os santos se despojam, mas estava de novo querendo o acréscimo. O acréscimo é mais fácil de amar.
E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.
O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo - a graça da paixão é curta.
Quem sabe, ser homem, como nós, é apenas uma sensibilização especial a que chamamos de “ter humanidade”. Oh, também eu receio perder essa sensibilização. Até agora eu tinha chamado de vida a minha sensibilidade à vida. Mas estar vivo é outra coisa.
Estar vivo é uma grossa indiferença irradiante. Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano - a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um sorriso se exala como de uma matéria. E ainda mais delicada serei, e como estado mais permanente. Estou falando da morte? estou falando de depois da morte? Não sei. Sinto que “não humano” é uma grande realidade, e que isso não significa “desumano”, pelo contrário: o não humano é o centro irradiante de um amor neutro em ondas hertzianas.
Se minha vida se transformar em ela-mesma, o que hoje chamo de sensibilidade não existirá - será chamado de indiferença. Mas ainda não posso apreender esse modo. É como se daqui a centenas de milhares de anos finalmente nós não formos mais o que sentirmos e pensarmos: teremos o que mais se assemelha a uma “atitude” do que a uma idéia. Seremos a matéria viva se manifestando diretamente, desconhecendo palavra, ultrapassando o pensar que é sempre grotesco.
E não caminharei “de pensamento a pensamento”, mas de atitude a atitude. Seremos inumanos - como a mais alta conquista do homem. Ser é ser além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que esse desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato.
Ah, não penses que tudo isso me nauseia, acho inclusive tão chato que me torna impaciente. É que se parece com o paraíso, onde nem sequer posso imaginar o que eu faria, pois só posso me imaginar pensando e sentindo, dois atributos de se ser, e não consigo me imaginar apenas sendo, e prescindindo do resto. Apenas ser - isso me daria uma falta enorme do que fazer.
Ao mesmo tempo eu também estava um pouco desconfiada.
É que, assim como antes eu me tinha apavorado com a entrada naquilo que poderia vir a ser o desespero, agora eu desconfiava de estar de novo transcendendo as coisas...
Estaria eu alargando demais a coisa para exatamente ultrapassar a barata e o pedaço de ferro e o pedaço de vidro? Acho que não.
Pois eu nem reduzia a esperança a um simples resultado de construção e contrafação, nem negava que existe pelo que esperar. Nem tirara a promessa: estava apenas sentindo, com um esforço enorme, que a esperança e a promessa se cumprem a cada instante. E isso era aterrador, eu sempre tive medo de ser fulminada pela realização, eu sempre havia pensado que a realização é um final - e não contara com a necessidade sempre nascente.
E também porque tinha medo, por não poder suportar a glória simples, de torná-la mais um dos acréscimos. Mas eu sei - eu sei - que há uma experiência de glória na qual a vida tem o puríssimo gosto do nada, e que em glória eu a sinto vazia. Quando se realiza o viver, pergunta-se: mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto.
Só que ainda preciso tomar cuidado para não fazer disto mais do que isto, pois senão já não será mais isto. A essência é de uma insipidez pungente. Será preciso “purificar-me” muito mais para inclusive não querer o acréscimo dos acontecimentos. Antigamente purificar-me significaria uma crueldade contra o que eu chamava de beleza, e contra o que eu chamava de “eu”, sem saber que “eu” era um acréscimo de mim.
Mas agora, através de meu mais difícil espanto - estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização.
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.