quarta-feira, 20 de março de 2013

Evocação de silêncios



O silêncio habitava 
o corredor de entrada 
de uma meia morada 
na rua das Hortas

o silêncio era frio 
no chão de ladrilhos 
e branco de cal 
nas paredes altas

enquanto lá fora 
o sol escaldava

Para além da porta 
na sala nos quartos 
o silêncio cheirava 
àquela família

e na cristaleira 
(onde a luz 
se excedia) 
cintilava extremo:

quase se partia

    Mas era macio 
    nas folhas caladas 
    do quintal 
         vazio

       e 
       negro 
       no poço 
       negro

       que tudo sugava: 
       vozes luzes 
       tatalar de asa

       o que 
       circulava 
       no quintal da casa

O mesmo silêncio 
voava em zoada 
nas copas 
nas palmas 
por sobre telhados 
até uma caldeira 
que enferrujava 
na areia da praia 
do Jenipapeiro

e ali se deitava: 
uma nesga dágua

um susto no chão

fragmento talvez 
de água primeira

água brasileira

Era também açúcar 
o silêncio 
dentro do depósito 
(na quitanda 
de tarde)

o cheiro 
queimando sob a tampa 
no escuro

energia solar 
que vendíamos 
aos quilos

Que rumor era 
esse? barulho 
que de tão oculto 
só o olfato 
o escuta?

que silêncio 
era esse 
           tão gritado 
           de vozes 
           (todas elas) 
           queimadas 
           em fogo alto?

           (na usina)

alarido 
      das tardes 
      das manhãs

      agora em tumulto 
      dentro do açúcar

      um estampido 
      (um clarão) 
      se se abre a tampa.


Ferreira Gullar