sexta-feira, 15 de março de 2013

Parto amanhã e pensava ainda há pouco nos meios de ver-te para dizer-te adeus. Chegas a propósito.
- Desejavas muito ver-me?
- Muito. Quero que aprendamos a conhecermo-nos mutuamente. Em seguida, nos separaremos. Na minha opinião, vale melhor conhecermo-nos antes de separarmo-nos. Tenho notado como me observas, durante esses três meses. Lia-se em teus olhos uma expectativa contínua. Não saberia tolerar isso e era o que me mantinha à distância. Afinal, aprendi a estimar-te: eis, pensava eu, um homenzinho de caráter firme. Nota que falo seriamente, embora rindo. Porque tu és firme, não és? Gosto de firmeza, por não importa que motivo e mesmo  na tua idade. Enfim, teu olhar ansioso deixou de desagradar-me, tornou-se-me mesmo simpático. Dir-se-ia que tens afeição por mim, Aliócha.
- Decerto, Ivã. Dimítri diz que és um túmulo. Eu digo que és um enigma. Tu o és ainda agora para mim, no entanto começo a compreender-te, desde esta manhã apenas.
- Que queres dizer? - disse Ivã, rindo.
- Não te zangarás, pelo menos? - perguntou Aliócha, rindo também.
- E então?
- Então, descobri que és um rapaz semelhante a todos os outros, aos 23 anos, um rapaz bem viçoso, bem gentilmente ingênuo, um verdadeiro fedelho, em uma palavra. Minhas palavras não te ofendem?
- Pelo contrário, estou admirado duma coincidência - exclamou Ivã, num ímpeto. - Acreditaria que desde nossa entrevista desta manhã só penso na ingenuidade dos meus 23 anos, e é por isso que começas, como se o tivesses adivinhado? Sabes o que dizia a mim mesmo ainda há pouco? Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse duma mulher amada, da ordem universal, persuadido ao contrário de que tudo não é senão um caos infernal e maldito e estivesse eu preso dos horrores da desilusão - mesmo então quereria viver ainda assim. Depois de ter bebido na taça encantada, só a deixaria uma vez esgotada. Aliás, perto dos trinta anos, pode ser que sinta saudade dela, mesmo inacabada, e irei... não sei aonde. mas,até os trinta anos, tenho a certeza, minha mocidade triunfará de tudo, do desencanto, do desgosto de viver, inconveniente  talvez; e penso que ele não existe, pelo menos antes de trinta anos. Esta sede de viver é chamada de vil por certos moralistas catarrentos e tuberculosos, sobretudo por poetas. É verdade que é um traço característico dos Karamázovi, essa  sede de viver a qualquer preço; encontra-se em ti, mas por que haveria de ser vergonhosa? Há ainda muita força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Quer-se viver, eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas sem saber por quê. Amo o heroísmo no qual talvez tenha deixado de crer desde muito tempo, mas que venero por hábito. (...) Quero viajar pela Europa, Aliócha. Sei que não encontrarei lá senão um cemitério, mas quão querido! Queridos mortos nele repousam, cada pedra atesta a vida ardente deles, sua fé apaixonada nos seus ideais, sua luta pela verdade e pela ciência. Oh! cairei de joelhos diante daquelas pedras,beijá-las-ei, derramando lágrimas. Convencido, aliás intimamente, de que tudo aquilo não é senão um cemitério e nada mais. E não serão lágrimas de desespero, mas de felicidade. Embriago-me com meu próprio enternecimento. Gosto dos brotos tenros da primavera e do céu azul. A inteligência e a lógica não entram nisso absolutamente, é o coração que ama, é o ventre, gosta-se de suas primeiras forças juvenis... Compreende tu alguma coisa dessa minha arenga, Aliócha? - E Ivã pôs-se a rir.
- Compreendo por demais, Ivã; desejar-se-ia amar pelo coração e pelo ventre, como bem o disseste. Estou encantado com esse teu ardor de viver. Penso que se deve amar a vida acima de tudo.
- Amar a vida, em vez do sentido da vida?
- Decerto. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como dizes; então somente compreender-se-á o sentido dela. Eis o que entrevejo desde muito tempo. A metade da tua tarefa está realizada e adquirida, Ivã: amas a vida. Ocupa-te com a segunda parte, é a salvação.
- Estás muito apressado em salvar-me, talvez não esteja eu ainda perdido. Em que consiste essa segunda parte?
- Em ressuscitar teus mortos que estão talvez ainda vivos.(...)


Fiódor Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi