Vou pelo corredor, alma enroscada como se a casa fosse um ventre e eu retornasse à primeira interioridade. O molho de chaves que a Avó me dera retilinta em minha mão. Já me haviam dito: aquelas chaves não valiam de nada. Eram de fechaduras antigas, há muito mudadas. Mas a Avó Dulcineusa guardava-as todas, porque sofria de uma crença: mesmo não havendo porta, as chaves impediam que maus espíritos entrassem dentro de nós.
Agora, confirmo: nenhuma chave se ajusta em nenhuma fechadura. Exceto uma, no sótão, que abre a porta do quarto de arrumas. Entro nesse aposento obscuro, não há lâmpada, um cheiro úmido recobre tudo como um manto. Deixo a porta entreaberta, para receber uma nesga de claridade.
De rompante, a porta se fecha. Sou engolido pelo escuro ao mesmo tempo que um corpo me aperta, com violência. Perco o equilíbrio, me recomponho e, de novo, o estranho se lança sobre mim. Não existe dúvida: estou sendo agredido, vão-me matar de vez, serei enterrado antes mesmo do Avô Mariano. Tudo isso relampeja em minha cabeça enquanto, sem jeito nem direção, me vou defendendo. Luto, esbracejo e, quando intento gritar, uma mão cobre a minha boca, silenciando-me. O intruso em meu corpo se estreita, ventre a ventre, e sinto, pela primeira vez, que se trata de uma mulher. Os seios estão colados às minhas mãos. Aos poucos, o gesto tenso afrouxa e o arrebatado vigor se vai reconvertendo em ternura. E já não é a mão que me recobre a boca. São lábios, doces e polpudos lábios. Quem é?, me pergunto. Tia Admirança é quem primeiro me ocorre. Podia ser? Não. Admirança é mais alta, mais cheia de corpo. As mãos da mulher são certeiras rodando nos meus botões e me deixando mais e mais despido. De início, resisto. Estou amarrado à interdição de não se fazer amor em tempo de luto. E ainda sussurro:
- Não podemos, há o morto...
- Que morto? Alguém morreu?
A mulher sem rosto me mordisca no pescoço, engalinhando-me a pele. A voz dela é indecifrável, alteada pela ofegação: esbatida, desfocada, se insinua e me vai invadindo intimidades.
Tudo acontece sem contorno, sem ruído, sem peso. Nunca o sexo me foi tão saboroso. Porque eu sonhava quem amava, sonhando amar naquela todas as mulheres. Admirança seria quem eu mais desejaria que fosse. Mas a carne daquela mulher me parecia de menos despontada idade. Outra seria, dessas tantas convidadas que circundavam pela casa. No final, ainda arfando no escuro, a mulher me passa uma caixa para as mãos.
- Entregue isto a Abstinência.
- E o vulto desaparece, além da porta. Eu bem podia ter espreitado no corredor para corrigir as minhas suspeitas. Mais forte, porém, foi o desejo de deixar em sombra a identidade daquela mulher. Fizera amor, sim, com uma ausência, a quem eu podia entregar o rosto de quem me aprouvesse.
Mia Couto
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra