quarta-feira, 13 de março de 2013

A náusea, Jean-Paul Sartre


Sexta-feira, Três horas 

Por um pouco não caí na armadilha do espelho. Evitei, mas é para tropeçar na armadilha do vidro: desocupado de mãos a abanar, aproximo-me da janela. As obras, A paliçada, a estação velha - a estação velha, a paliçada, obras. Bocejo com tanta força que me vem uma lágrima aos olhos. Tenho na  mão direita o cachimbo e na esquerda a bolsa de tabaco. Era preciso encher o cachimbo. Mas falta-me a coragem. Deixo cair os braços, encosto a testa ao vidro. Aquela velha, além, irrita-me. (...). Às vezes para com um ar amedrontado, como se um perigo invisível tivesse roçado por ela. Ei-la por baixo da minha janela; o vento cola-lhe as saias aos joelhos. Para, compõe o lenço. Tremem-lhe as mãos. Lá vai outra vez: agora vejo-a de costas. Vejo um bicho-de-conta. Suponho que vai virar à direita, para o Boulevard Noir. Tem ainda uns cem metros a percorrer para o que precisará, pelo andar com que vai, duns bons dez minutos; dez minutos durante os quais ficarei como estou, a olhar para ela, de testa colada ao vidro. Vai parar vinte vezes, retomar a marcha, parar outra vez... Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, mais próximo um tudo-nada que o presente. Que necessidade tem de realizar? Que vantagem é que isso lhe dará? A velha afasta-se, trôpega, para, compõe uma madeixa que lhe saiu debaixo do lenço. Recomeça a andar: ainda agora estava além, agora está aqui... torna-se-me tudo confuso: eu vejo ou prevejo os gestos dela? Já não distingo o presente do futuro, e, todavia, há uma duração, uma realização, que opera pouco a pouco; a velha avança na rua deserta,  desloca os seus grandes sapatos de homem. É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que acede lentamente à existência que faz esperar, e que, quando chega, nos enfastia, porque conhecemos então que já estava ali havia muito. A velha aproxima-se da esquina da rua; é apenas, agora, um montinho de pano preto. Pois bem, sim, concedo, há nisto - algo novo: ela não estava ali há bocadinho. Mas é um novo desbotado, sem viço, que nunca poderá surpreender. A velha vai dobrar a esquina da rua, leva imenso tempo a dobrá-la - uma eternidade. Tiro-me da janela e percorro o quarto, titubeante; deixo-me apanhar pelo espelho, olho para, mim, tenho nojo: mais uma eternidade. Finalmente, escapo à minha imagem, atiro-me para cima da cama. Olho para o teto; queria dormir. Calmo. Calmo. Deixei de sentir o deslizar, o roçar do tempo. Vejo imagens no teto. Primeiro, círculos de luz, depois cruzes... É um borboletear. E lá vem outra imagem a formar-se; esta, no fundo dos meus olhos: um grande animal de joelhos. Vejo-lhe as patas da frente, e como uma albarda. O resto está mal definido. Todavia, reconheço a figura: é um camelo que vi em Marraquexe, amarrado a uma pedra. Tinha-se ajoelhado e levantado seis vezes a seguir; os garotos riam e excitavam-no, com a  voz. Há dois anos era maravilhoso: bastava fechar os olhos, logo a cabeça me zumbia como uma colmeia: revia caras, árvores, casas, uma japonesa de Kamaishi a lavar-se, nua, uma barrica, um russo morto, com um largo ferimento na fronte e um charco vermelho ao lado que era todo o seu sangue. Sentia, por evocação, o gosto do cuscus, o cheiro a azeite que enche ao meio-dia, as ruas de Burgos, o aroma do  funcho que flutua nas de Tetuão, o assobiar dos pastores gregos; ficava emocionado. Há muito tempo que essa alegria se gastou. Irá renascer hoje? Um sol tórrido, na minha cabeça, desloca-se rigidamente como uma chapa de lanterna mágica. Segue-o um fragmento de céu azul; depois de alguns estremeções, o sol imobiliza-se, fico todo dourado por dentro. De que dia vivido em Marrocos (ou na Argélia?, ou na Síria?) se desligou, de súbito este brilho? Deixo-me afundar no passado.


Jean-Paul Sartre, A Náusea