segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
o advogado do diabo
"Somos como todos os outros homens. Somos sacerdotes por eleição e vocação. E celibatários por Legislação canônica. É uma carreira, uma profissão. Os poderes que exercemos, as graças que dispensamos, são independentes do nosso próprio valor. É melhor, para nós, que sejamos antes santos que pecadores... mas, como os nossos irmãos que estão fora do ministério, somos, em geral, algo que se situa entre esses dois extremos."
"Estou na Igreja há longo tempo, meu amigo. Quanto mais alto se sobe mais se vê — e de modo mais claro. É uma lenda piedosa dizer que o sacerdócio santifica um homem, ou que o celibato o enobrece. Se um sacerdote conseguir, até os quarenta e cinco anos, conservar as mãos fora do bolso e suas pernas longe de uma cama de mulher, conta com razoável probabilidade de continuar assim até o dia de sua morte. Ademais, existe ainda no mundo grande número de celibatários profissionais. Mas todos nós estamos ainda sujeitos a orgulho, ambição, preguiça, negligência, avareza. Não raro, é-nos mais difícil salvar nossas almas do que os outros as suas. Um chefe de família tem de fazer sacrifícios, impor disciplina a seus desejos, praticar o amor e a paciência. Talvez pequemos menos, mas, no fim, temos menos méritos."
"— Tudo na Igreja é política — lembrou-lhe Marotta, com suavidade. — O homem é um animal político dotado de uma alma imortal. Não se pode dividi-lo... assim como não se pode dividir a Igreja em funções isoladas e sem relação entre si. Tudo o que a Igreja faz se destina a dar um caráter espiritual a um desenvolvimento material. Designamos um santo como patrono da televisão. Que é que isso significa? Um novo símbolo de uma velha verdade: o de que toda atividade lícita conduz ao bem ou pode ser pervertida e transformar-se em mal.
— Um número demasiado grande de símbolos pode obscurecer a face da realidade — observou, secamente, Meredith. — E um número demasiado de santos pode desacreditar a santidade. Sempre julguei que a nossa função na Congregação dos Ritos era... não colocá-los no calendário mas conservá-los fora dele."
"Eis aí por que creio que essa investigação poderá ajudá-lo. Ela o levará para fora de Roma, para uma das regiões mais miseráveis da Itália. O senhor reconstituirá a vida de um morto segundo o testemunho daqueles que com ele viveram... os pobres, os ignorantes, os esbulhados. Seja ele santo ou pecador, isso, no fim, não faz diferença alguma. O senhor viverá em meio de gente simples, falará com tais pessoas. E entre elas talvez encontre a cura para a enfermidade de seu próprio espírito.
— E qual é a minha enfermidade, Eminência?
(...)
— Não há paixão em sua vida, meu filho. O senhor nunca amou uma mulher, nem odiou um homem, nem sentiu piedade por uma criança. Apartou-se demasiado tempo e é, agora, um estranho no seio da família humana. Jamais pediu nada nem deu nada. Jamais conheceu a dignidade da privação, nem a gratidão de um sofrimento compartilhado com ou trem. Eis aí a sua enfermidade. Eis aí a cruz que o senhor talhou para os seus próprios ombros. Aí é que começam não só as suas dúvidas, como também os seus temores... pois um homem que não pode amar o seu semelhante tampouco pode amar a Deus."
"Olhando-os, Blaise Meredith sentiu-se tocado pela vaga nostalgia de um passado que jamais lhe pertencera.Que conhecera ele do amor exceto uma definição teológica e uma culpa sussurrada no confessionário? Que significado tinham os seus conselhos diante dessa franca, erótica comunhão, que, por disposição divina, era o começo da vida e a garantia da continuidade da espécie humana? Logo, talvez naquela mesma noite, aqueles dois corpos jazeriam juntos na pequena morte da qual surgiria uma nova vida — um novo corpo, uma nova alma. Mas Blaise Meredith dormia sozinho, com todos os mistérios do universo reduzidos a um silogismo escolástico dentro do seu crânio. Quem estava certo — ele ou eles? Quem se aproximava mais da perfeição do desígnio divino? Havia apenas uma resposta. Eugênio Marotta tinha razão. Ele se afastara do convívio da família humana. Aquelas duas criaturas arremedam para a frente a fim de renová-la, perpetuá-la."
"O senhor encontrará mais do que o suficiente aqui no sul... Formalismo, feudalismo, reação, velhos a seguirem velhos caminhos porque os velhos caminhos parecem mais seguros, e eles não estão preparados para os novos. Encaram a pobreza e a ignorância como cruzes que devem ser carregadas, e não como injustiças que devem ser remediadas. Acreditam que quanto mais sacerdotes, monges e freiras houver, tanto melhor para o mundo."
"Procurarei explicar. Um homem que se encontra à sombra da morte não deve escandalizar-se, mesmo que ouça da boca de um bispo o que vou dizer. Acho que a Igreja, neste país, está necessitando de uma reforma drástica. Penso que temos santos demais e pouca santidade, demasiadas cerimônias religiosas e ceticismo insuficiente, demasiadas medalhas de santos e remédios insuficientes, demasiadas igrejas e um número insuficiente de escolas. Temos três milhões de desempregados e três milhões de mulheres que vivem da prostituição. Controlamos o Estado através do Partido Democrata Cristão e do Banco do Vaticano; não obstante, estamos diante de uma dicotomia que proporciona prosperidade à metade do país e deixa a outra metade a apodrecer na miséria. Nosso clero é inculto e inseguro; no entanto, vivemos a vituperar os anticlericais e os comunistas. Conhece-se uma árvore pelos seus frutos... e penso que é melhor proclamar uma nova política de justiça social do que um novo atributo da Santa Virgem. A primeira é uma aplicação necessária de um princípio moral; a segunda é simplesmente uma definição de uma crença tradicional. Nós, do clero, somos mais ciosos dos direitos que nos foram conferidos pela Concordata do que dos direitos de nossa gente segundo a lei natural e divina..."
"Era uma estranha mistura de terrores: o medo da morte, a humilhação da dissolução lenta, a sinistra solidão do crente em presença de um Deus sem rosto que sabia invisível mas que logo deveria encontrar, esplêndido e sem véus, no dia do Juízo. Não podia fugir daqueles temores por meio do sono, nem exorcizá-los por meio da prece, pois a prece se tornara um árido ato da vontade, que não conseguia abafar a dor nem constituir um bálsamo para ela.
De modo que, aquela noite, apesar da fadiga, tentou adiar o purgatório. Despiu-se, vestiu o pijama, calçou os chinelos, enfiou um robe e saiu para o balcão.
A lua pairava alta sobre o vale — um navio de prata antiga, plácido, sobre um mar luminoso. As laranjeiras cintilantes como pontas de adagas que saíssem de uma confusa massa de sombra. Mais abaixo, a água estendia-se plana e cheia de estrelas por trás de uma barricada de tábuas e montes de pedregulhos, enquanto os braços das montanhas envolviam isso tudo como muralhas, impedindo a entrada do caos dos séculos.
Blaise Meredith olhou aquilo e achou bom. Bom por si mesmo, e bom devido ao homem que havia feito aquilo. O homem não vivia apenas de pão — mas não podia viver sem ele. Os velhos monges tinham pensado do mesmo modo. Plantavam a cruz no meio de um deserto — e, depois, plantavam trigo e
árvores frutíferas para que o árido símbolo florescesse numa verde realidade. Sabiam, melhor do que muitos, que o homem era uma criatura feita de carne e espírito. Quando o corpo estava doente, a responsabilidade moral do homem diminuía. O homem era um caniço pensante, mas esse caniço devia estar firmemente plantado em terra negra, as raízes regadas, aquecido pelo sol."
Morris West, O advogado do diabo