quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Capítulo V - A morte anuncida do pai imortal



A mãe é eterna, o pai é imortal.

- Filho, você que tem experiências na vida, me ajude.
- O que passa, pai?
- Me leve, lá.
- Lá onde?
- Lá, às putas.
- Como diz?
- É que eu nunca fui às meninas, nem sei como é. Lá em Luar-do-Chão não há.
   Nem acreditava no que escutava. Depois, me veio o riso, incontível. O que sucedia naquela velha cabeça? Será que a viuvez lhe descera aos órgãos? Olhei o meu pai ali, no meio da sala, com calças de pijama e camisola interior, parecia ser ele o órfão da casa. E me pesou, pela primeira vez, o tamanho da solidão daquele homem. Senti um remorso por não ter notado antes aquela sombra derrubando meu velho.
- Às putas, pai?
- Sim. Me conduza lá onde elas se mostram todas despeladas. E me explique como se faz.
 - Mas há doenças, isso tudo. Os tempos são outros, pai.
 (...)
   Fulano Malta não se resignava. Não aceitei prolongar o assunto e fechei a porta. A noite me escondeu, a salvo da conversa.
   Esperava que fosse assunto passado. Na noite seguinte, porém, a mesma requerência. Ele insistiu, já com chantagem. Se eu não o orientasse nessa excursão, ele iria por sua conta e dano. A discussão azedou, até que lhe gritei:
   - Devia ter vergonha pai, ser eu, seu filho, a deitar-lhe juízo.
   Não respondeu. Com vigor se levantou e abriu uma gaveta. As duas mãos esgravataram as entranhas do armário, rosto desviado em outra atenção. Os gestos bruscos se desenhavam às cegas. O tom era grave quando falou:
- Veja esses papéis.

   Atirou tudo para cima da mesa. Recolhi os documentos e, gelado, fui tomando conhecimento: ali se escrevia a morte dele. Em letra apressada se rabiscava o prognóstico médico: lhe cabiam quando muito uns escassos dias de vida.
- Quem escreveu isto? - a voz me estremeceu.
- Foi o Amílcar Mascarenha, esse que é muitíssimo doutor.
   Deixei-me abater na cadeira, os papéis me sobrando dos dedos. Aquelas folhas pareciam crescer, já não se via nada senão os gatafunhos mal desenhados do médico.
O chão do mundo todo rabiscado em sentença fúnebre. A letra do indiano me travava a voz quando quis falar. Tive que repetir:
- Amanhã, pai, amanhã vamos.
- Promete?
Abanei a cabeça e saí. Na noite seguinte, meu velho estava de fato e gravata, tinha-se esfregado com pétalas de chimunha-munhuane, essas florzinhas que cercam as casas suburbanas. Sacudi algumas folhas que tinham ficado presas na sua barba.
- Estou de mais bonito?
- De mais, pai. Se eu fosse mulher...
Levei-o pela avenida, cruzamos luzes, semáforos, anúncios. Eu seguia atrás, tímido, quase medroso. Finalmente, na desiluminada esquina lá estava ela. O vestido reluzente lhe marcava as saliências, convidando aos tresvarios. O velhote deu uns passos tímidos em direção à moça. E logo se trepadeirou nela.
   Fiquei ali, um tempo, como se receasse nunca mais o ver. Depois regressei a casa. O velho reapareceu, pela madrugada, feliz de cantar. E nas outras madrugadas também.
  
   E semanas passaram. No desfiar do tempo, o pai repetindo as noturnas excursões, nessa felicidade que é, de uma só vez, ter o mundo todo dentro de nós. Se havia lição, o velho aprendeu-a num abrir de olhos e fechar de ziper. Já não necessitava conselho. Noite após noite, lá estava ele, pontualíssimo, espreitando a porta.
E saindo assim que o escuro ganhava espessura.
   Pior que as prostitutas, porém: começou a desaparecer dinheiro de casa. Custava-me aceitar, mas só podia ser obra de meu pai. Ele passara a roubar, e já não era apenas dinheiro. Desapareciam bens, recordações de sentimento. Quando evaporaram as pequenas heranças de minha falecida mãe eu me desabri, severo:
   - Acabou, pai. O senhor vai sair desta casa, já amanhã.
   Ele não deu luta. Arrumou as suas coisas numa mala e pediu para ficar apenas aquela última noite. A madrugada já se anunciava quando escutei ruídos na cozinha.
Era meu velho, debruçado no lavatório. Parecia aflito, respirava mal, uma baba lhe escorria pelo pescoço.
- Estou morrendo, meu filho.
Amparei-o para o sofá da sala. Ali ficou, num fiorrapo.
   - Amanhã vou-me embora - suspirou. A mão na garganta parecia ajudar o trânsito dos ares. - Amanhã saio, me deixe só respirar um pouco.
   Ficamos os dois em silêncio. Um frio me percorria como se antevisse o velório. Depois, com voz ainda gemente, ele falou:
- Sabe o que foi o melhor disto?
- As miúdas?
- O melhor disto tudo foi você.

- Como eu?
- Foi ter andado consigo aí pelas vidas. Parecíamos quase manos, sabe? Nestes dias, não fui pai, nem tive idade nenhuma. Entende?
   Depois, adormeceu. A manhã já ia alta e eu ainda ali, cabeceirando o meu velho pai. Espreitei a cidade pela janela entreaberta. Lá fora, a vida desfilava, impávida.
Injustiça é o mundo prosseguir assim mesmo quando desaparece quem mais amamos. Será que em Luar-do-Chão alguém adivinharia o estado de meu pai?
   Foi quando, entre a multidão, notei que passava o Doutor Mascarenha. Lá ia ele sobraçando sua inevitável pasta preta. Saí, correndo pelas ruas. Quando o interceptei pedi-lhe explicação sobre o diagnóstico que destinara em meu pai.
- Diagnóstico? Qual diagnóstico?
- O senhor não previu a morte do meu velho?
- Mas que morte? Ele está melhor que nós ambos juntos.
   Nem sabia se era estar contente aquele bater no meu peito. Acelerei o regresso a casa. Já adivinhava o que me iria esperar. Nada. Era nada o que me aguardava.
Meu pai já havia saído. A porta aberta, definitiva. E apenas um rasto desse perfume que ele usava quando se incursionava pelas noitadas.
        Ainda hoje aquela porta se conservava assim: aberta. Como se, desse modo, houvesse menos obstáculo para que meu pai regressasse.


Mia Couto
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra