Eu não quero um filho teu, digo velado, a boca no travesseiro, o hálito aquecendo as plumas importadas, não minha pombinha safada, não essa delicadeza. então? bem, Rute, isso de um filho, preciso sentir isso
as mulheres querem filhos
sei
então me darás o samovar dourado para a pequena mesa do vestíbulo?
Tapa-me os ouvidos que eu não ouça mais a voz untada oleoso-amêndoa oblíqua sobre o meu pescoço, os da empresa começam a sussurrar no mesmo instante em que entro, me acompanham pelas salas contíguas, tu pensas por acaso, Rute, que toda dignidade que aparentam, a reverência, o brilho dos ternos cinza-seda é homenagem a mim Tadeu, homem-verdade, nu, esse que agora repensa o poço central, o vivo de si mesmo?
Nada, apenas relatam o que conseguiram manhosamente abiscoitar, falam de outros, os pequenos, de como foi possível assimilar os empresins do medo, e o sorriso é um pouco de lado, discreto - as equipes do gozo - bonito nome, não é Rute? Invenção de Tadeu.
As equipes do gozo, nossas, são feitas de homens escolhidos, homens cuja praticidade consiste em desfazer os nós, e os nós podem ser um volume de cobras absolutamente imprevisível, as nossas equipes do gozo transformam qualquer via sinuosa numa idelével linha reta
e dessa vez como foi?
como sempre, por vias indiretas
retas demolidoras, de início sem assustar.
Corpo de Doutrina-Porcus Corpus, é este corpo de doutrina que preserva a alma do homem e alimenta de compaixão a sua matéria?
Para que os homens consigam inúteis avelórios, para que o meu ser-de-antes, Tadeu - homem de empresa, cresça em banalidade e supérfluas aderências, para que todos os homens entendam o TER = HONRADEZ, IMPORTÂNCIA, ESSÊNCIA, para isso é que existes Corpo de Doutrina, Estatuto, Método, para esculpir a todos em gesto enrijecido, o coração pedroso? Chamam de quê o estar à volta de uma grande mesa, mais lucros mais rendas, todos nós, esses dignos de terno cinza-seda, empoados nas gordas ou veladas barrigas, fazendo tremer os outros, soberba presença, empalidecendo contínuos gerências subgerências, os outros que têm apenas o seu próprio corpo, chamam de quê o nosso contorno que esconde o seu avesso? E chamas de amor, Rute, o estar na mesma casa, comer na mesma mesa, e a consciência nada comprometida na mesma direção?
Primeira manhã onde me reconheço tomado por uma coisa viva (não é justo, Tadeu) sagrada manhã, viva-luzente, nem sei por onde começo (não é justo porque) porque não é ó começar, já sei de outros começos, amor palavra-caindo do teto, encharcando tudo, não é uma mulher, nem o prazer de construir o verso,
é a volúpia de olhar, de
não é justo porque eu só pensei em você todos esse anos, não houve filhos porque -
de olhar tudo o que está vivo, repensar a morte também como coisa de vida -
porque não querias, Tadeu, e cada mulher quer filhos do homem que ama, eu sou mulher, e nisso igual às outras -
Demais igual, demais igual às outras, olhando a casa com o teu olho vazio, sorrindo, sorriso dente-alvin, uma vez por mês a visita ao dentista, perborato de sódio, duas vezes por semana a massagem com algas no instituto, os banhos de pinho, as máscaras de mel, teu corpo oco, minha mão gelada no teu seio de menina, te preferia gasta, tomada pela vida
não é nada contigo, é difícil dizer
a gente vive uma vida inteira ao lado e
Uma vida inteira, como foi isso? Como foi de repente poder ficar nessa casa, na empresa, levantar-me pensando no algarismo santo, perder a alma
perdi-a, perdi-a, Rute
ainda não me perdeste, Tadeu
A ALMA, eu dizia, alma de mim, Tadeu-homin, lá na Casa dos Velhos, lá vou saber até onde se faz verdade a minha volúpia
Quê?
Longe, a Casa que eu vi um dia, perguntei a um amigo, ele me disse que lá viviam os velhos, aqueles que são difíceis de guardar no quarto, de emparedar, aqueles que fedem à urina e mofo, pais sogros avós.
estás louco
Arrebentando de gozo, louco sim, cerrado para o teu mundo e para o mundo dos outros, nervura inaugural deste meu corpo novo. Que horas são? Estou mesmo aqui? pergunto a cada instante só para camuflar o meu projeto de querer estar noutro lugar, só para que eu tenha um minuto a mais de suposta segurança, mas não me encontro aqui e a hora não é essa que me dizes, há um luminoso colocar-se no mundo e uma hora extra, estou zero-hora, Rute, amigos, estou zero-mundo, e não pensem que há uma nova mulher, aquela do bar, digamos que seria gratificante se houvesse, mas não é isso, não sou Tadeu preparado para amar como um potro lustroso, (alguém ao meu lado ironia invisível: Tadeu-cavalo-rufião excitando a mulher, e o outro se apossando) não é mulher, e aí me lembro dos médicos ingleses: olhem, o último amor, senhores casados, pode ser o último, emoção-infarto sobre o corpo da outra, a outra, aventura-dionísio, a outra feita de súplicas e chamas, sol inesperado sobre a nossa carne amolecida, chamam de carne não é? chamam de carne isso que nos recobre, mas posso pensar como seria o nome da minha carne se eu efetivamente quisesse nomeá-la, pensar a carne longe das referências, pensar a carne como se quiséssemos mergulhá-la na pia batismal, ANANHAC de mim, te chamas ANANHAC, carne nova de Tadeu imaculada, por que não te buscas lá, onde os velhos dormem, tua clausura de pedra, goivos alados, asa e precisão ocupando um espaço, Rute, se te tomo, me sabes além da espessura do corpo? (meu pai na varanda, café-exportação, o sol sobre a maçã: Tadeu tem os pés de água, amolda-se) Amoldei-me? Até onde? a superfície fechada é toda porosidade sobre os pés de Tadeu? (caminha dentro das coisas esse meu filho, as armaduras se fendem) Sim, Rute
eu penso que é preciso cuidar das coisas, que tudo aqui é delicado
delicado quer dizer outra coisa cuidar é diferente na sua boca
que são coisas finas
delicado e cuidar e coisa fina não é o que são as coisas, se tocas essas coisas que dizes, sentindo-as como tu sentes, as coisas adquirem uma topografia banal inesperada, banalidade é o que se incorpora às coisas que tocaste, BANALIDADE INSUSPEITADA das coisas sob os dedos de Rute. Porque é caro, não é isso, Rute?
Claro
E o que é isso? isso aqui?
é uma pedra Tadeu
sei, que mais?
é uma pedra e pronto
e o cachorro vira-latas naquele canto da rua... te lembras? inventaste uma fala de puro medo que o trouxeste para casa, não foi?
pedras e vira-latas
plantas também, Rute
a samambaia tem sempre água, não é isso que se faz às plantas?
alma dos cães, da pedra, da planta, por incrível que pareça ando buscando a tua
Porque era jovem essa Rute, foi por isso? Mas eu também era. Porque Rute desmaiava porque de repente eu não sabia até onde o meu amor? Foi isso, Tadeu? A comoção de se saber o eixo de outra vida? alma é uma coisa que eu não sei, ninguém sabe, Tadeu. Porque teve sempre bons dentes, talvez isso, muito dentesmil, cinquenta e dois dentes. Porque gemia na hora do amor de um jeito infantil e obsceno? Porque às vezes parava diante de mim e me olhava como se soubesse do poço? Olho amarelo vazio me olhava. Era só isso. Ela não sabia do poço. Da alma da empresa sim - do tabernáculo - dentro dele o oco, não Aquele, acrescentaram peso a Empresa-pobre-corpo, se fosses feita de carne como serias?
Gorda, o pelo ruivo cobriria a superfície ondulada, ferrosa, ferroso é o que serias, tabernáculo, ferroso como o sopro das bruxas, ímã para que tudo à tua carne se apegasse, carne da empresa é GUILHOT, assim teu escuro nome - de engolir - de ilha - guilhotina, rapace isolada assassina da alma de Tadeu, comedora de almas porque atrás de ti há um corpo que sustenta ideias que se dizem políticas, isentas de fraternidade, arrogantes
dispenso o motorista?
Encosta a face educada na minha lívida cara, o roupão de linho tem a gola pesada de bordados, as mangas largas envolvem os pulsinhos finos, duas hastes presas às duas mãos inúteis, mas lava-se sim, encharca-se de óleos sim, tateia o ventre examina os dentes, o espelho de face dupla acusa um diminuto pelo no veludoso queixo, espio, vê, Tadeu, duro como um espinho, hoje marco hora no dermatologista, pega, vê se não é duro. Duro sim. Absurdo um pelo no meu queixo. Absurdo Rute, existires junto a mim, eu junto à empresa, a empresa no mundo, o mundo nesse todo, um espaço de buracos negros e redondos corpos, cintilâncias, negruras, uma extrassístole outra vez e cada vez que me repenso e sempre que sofro sedução e emigro, disso sim eu gosto, de ser tomado, de ser seduzido como estou sendo agora pela vida. SEDUÇÃO.
Hilda Hilst, Tu não te moves de ti
Editora Globo S.A.
p. 29 - 35