quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O Cansaço de Rosabel (1908)


Na esquina de Oxford Circus, Rosabel comprou um ramo de violetas, e era principalmente por isso que ela tinha comido tão pouco — porque um bolinho, um ovo cozido e uma xícara de chocolate no Lyons não são o suficiente, depois de um dia de trabalho duro em uma loja de chapéus. Quando saltou para o degrau do ônibus Atlas, segurando a saia com uma das mãos e agarrando-se ao corrimão com a outra, Rosabel pensou que teria dado sua alma por um bom jantar — pato assado e ervi­lhas, recheio de castanha, pudim com calda de conhaque —-, alguma coisa quente, forte e substancial.

Sentou-se ao lado de uma moça muito próxima dela em idade, que lia Anna Lombard numa edição barata, de capa mole; e a chuva tinha espalhado lágrimas sobre as páginas. Rosabel olhou para fora das janelas; a rua estava escura e nevoenta, mas a luz batendo nas vidraças transformava sua opacidade em opala e prata, e as joalherias vistas através delas eram palá­cios de fadas. Seus pés estavam horrivelmente molhados e ela sabia que a barra de sua saia e a de sua anágua estavam cober­tas de lama negra e gordurosa. Havia um cheiro enjoativo de humanidade encalorada — parecia estar escorrendo de todo mundo, dentro do ônibus — e todos tinham a mesma expres­são, sentados tão imóveis, olhando fixamente para a frente.

Quantas vezes ela tinha lido estes comerciais — “Sapólio Pou­pa Tempo, Poupa Trabalho”, “Molho de Tomate Heinz” — e o diálogo tolo, irritante, entre o médico e o juiz a respeito dos méritos do “Pirético Salino de Lamplough”. Passou os olhos pelo livro que a moça lia com tanta atenção, pronunciando as palavras de uma forma que Rosabel detestava, molhando o dedo indicador e o polegar cada vez que virava a página. Ela não podia ver muito bem; era alguma coisa sobre uma noite quente, voluptuosa, uma banda tocando, e uma moça com belos om­bros brancos. Deus do céu! Rosabel agitou-se de repente e de­sabotoou os dois primeiros botões do casaco… ela estava quase sufocando. Através dos olhos meio fechados, toda a fi­leira de pessoas no assento do lado oposto parecia reduzir-se a um rosto irreal, de olhos fixos…

E esta era sua esquina. Ela tropeçou um pouco ao sair e tombou sobre a moça a seu lado. “Perdão”, disse, mas a moça nem ao menos levantou os olhos. Rosabel viu que ela estava sorrindo enquanto lia.

Westbourne Grove tinha o aspecto que ela sempre imagi­nara que Veneza teria à noite, misteriosa, escura, os próprios troles pareciam gôndolas esquivando-se para lá e para cá, e as luzes arrastando o seu brilho estranho — línguas de fogo, lam­bendo a rua molhada — eram peixes mágicos nadando no Gran­de Canal. Ela estava mais que contente de chegar a Richmond Road, mas, da esquina da rua até chegar ao número 26, ela ficou pensando naqueles quatro lances de escadas. Oh, por que quatro lances? Era realmente criminoso exigir que as pessoas vivessem a uma altura dessas. Todas as casas deviam ter um elevador, uma coisa simples e barata, ou então uma escada elé­trica como a de Earl’s Court — mas quatro lances! Quando chegou no vestíbulo e viu o primeiro lance que a esperava, e a cabeça empalhada de albatroz no alto, brilhando fantasmagoricamente na luz do pequeno bico de gás, ela quase chorou. Bem, isso tinha de ser enfrentado; era muito parecido com subir de bicicleta uma colina íngreme, mas não havia a satisfação de descer vertiginosamente do outro lado…

Seu quarto, afinal! Ela fechou a porta, acendeu o gás, tirou o chapéu e o casaco, a saia e a blusa. Tirou a velha camisola de flanela do gancho atrás da porta e vestiu-a, depois desa­botoou as botas — refletindo que as meias não estavam tão úmidas que precisassem ser trocadas. Foi até o lavatório. O jarro não tinha sido enchido hoje, de novo. Havia água apenas para molhar a esponja e o esmalte da bacia estava soltando — pela segunda vez ela havia arranhado o queixo.

Eram só sete horas. Se ela levantasse a persiana e apa­gasse o gás, seria muito mais tranqüilo — Rosabel não queria ler. Então ajoelhou-se no chão, descansando os braços na solei­ra da janela… apenas uma fina lâmina de vidro entre ela e o grande mundo molhado lá fora!

Começou a pensar em tudo o que havia acontecido du­rante o dia. Será que ela esqueceria, algum dia, aquela mulher horrível, vestida com uma capa cinza, que queria um gorro enfeitado — “Uma coisa púrpura com uma coisa rosada de cada lado” —, ou a moça que tinha experimentado todos os chapéus da loja, dizendo depois que “voltaria amanhã e decidi­ria definitivamente”? Rosabel não pôde deixar de sorrir; a des­culpa era tão esfarrapada…

Mas tinha havido uma outra — uma moça com bonitos cabelos vermelhos, pele clara e olhos da cor daquela fita verde entrelaçada de dourado que tinha chegado de Paris na semana passada. Rosabel tinha visto seu carro elétrico à porta; um ho­mem tinha entrado com  ela, um homem muito jovem, e tão bem vestido…

“O que é mesmo que eu quero, Harry?”, ela disse, en­quanto Rosabel tirava os alfinetes de seu chapéu, desatava o véu e entregava-lhe um espelho de mão.

“Você precisa de um chapéu preto”, ele respondeu, “um chapéu preto com uma pluma que vá em volta dele todo e do pescoço, com o qual se possa dar um laço embaixo do queixo e cujas pontas possam ser enfiadas sob o cinto — uma pluma de tamanho razoável.”

Risonha, ela lançou um olhar para Rosabel: “Você tem algum chapéu assim?”

Eles foram muito difíceis de satisfazer; Harry pedia o impossível e Rosabel estava quase desesperada. Então ela lem­brou-se da grande caixa intacta, no andar de cima.

“Ah, um momento, Madame”, ela tinha dito. “Acho que tal­vez possa mostrar-lhe uma coisa que lhe agrade mais.” Ela tinha subido esbaforida, cortado os cordões, espalhado o papel da em­balagem e, sim, lá estava “o chapéu” — bastante grande, macio, com uma pluma enorme, encurvada, e uma rosa de veludo preto, nada mais. Eles tinham ficado encantados. A moça tinha colocado o chapéu na cabeça, passando-o em seguida para Rosabel.

“Deixe-me ver como ele fica em você”, disse ela, enru­gando a testa, na maior seriedade.

Rosabel virou-se para o espelho, colocou o chapéu sobre os cabelos castanhos e virou-se para eles.

“Oh, Harry, não é adorável?”, exclamou a moça. “Eu te­nho de ficar com este!” Ela sorriu outra vez para Rosabel. “Ele fica muito bem em você.”

Uma súbita, ridícula sensação de raiva tinha tomado con­ta de Rosabel. Ela quis atirar o lindo e perecível objeto no rosto da moça e inclinou-se sobre o chapéu, ruborizada.

“Ele é primorosamente acabado na parte interna, Mada­me”, disse. A moça saiu ligeira para o carro, deixando Harry para pagar e levar a caixa.

“Vou direto para casa, pôr o chapéu, antes de ir almoçar com você”, Rosabel ouviu-a dizer.

O homem inclinou-se para ela quando Rosabel fazia a nota da compra; depois, enquanto contava o dinheiro colocan­do-o em sua mão, perguntou: “Já foi pintada alguma vez?” “Não”, disse Rosabel secamente, notando a rápida mu­dança da voz dele, o ligeiro tom de insolência, de familiaridade.

“Pois devia ser”, disse Harry. “Tem um danado de um corpinho bonito.”

Rosabel não deu a mínima atenção. Como ele era bonito! Ela não tinha pensado em mais ninguém o dia inteiro; seu rosto a fascinava; podia ver claramente suas bonitas sobrancelhas retas, o cabelo que crescia a partir da testa com um ligeiro encrespamento, a boca risonha, desdenhosa… Tornou a ver as mãos delgadas contando o dinheiro na palma da mão dela… De repente, Rosabel empurrou o cabelo de cima do rosto; sua testa estava quente… se aquelas mãos delgadas pudessem pou­sar um momento… na sorte daquela moça!

Suponhamos que elas tivessem trocado de lugar. Rosabel iria para casa com ele, é claro que eles estavam apaixonados, mas não estavam noivos, embora quase esti­vessem; e ela diria “volto já”. Ele esperaria no carro en­quanto a criada carregava o chapéu escadas acima, seguin­do Rosabel. Depois, o magnífico quarto de dormir cor-de- rosa e branco, com rosas por toda parte, em enormes vasos de prata fosca. Ela se sentaria diante do espelho e a criadinha francesa prenderia seu chapéu e encontraria um véu fino, elegante, e um outro par de luvas de camurça branca — havia caído um botão das que ela usara de manhã. Ela tinha perfumado as peles, as luvas, o lenço, apanhado um grande regalo e corrido escadas abaixo. O mordomo abriu a porta; Harry estava esperando e juntos eles se foram… Isso era vida, pensou Rosabel! A caminho do Carlton eles pararam no Gerard, Harry comprou para ela lindos buquês de viole­tas de Parma, enchendo-lhe as mãos com elas.

“Oh, elas são lindas!”, disse ela, segurando as flores con­tra o rosto.

“Você está como devia estar sempre”, disse Harry, “com as mãos cheias de violetas.”

(Rosabel notou que seus joelhos estavam endurecendo; sentou-se no chão e encostou a cabeça contra a parede.) Ah, aquele almoço! A mesa coberta de flores, uma banda escondida atrás de um grupo de palmeiras, tocando músicas que lhe aque­ciam o sangue como vinho — a sopa, as ostras, os pombos, e batatas ao creme e champanha, é claro, e por fim, café e cigar­ros. Ela se inclinaria sobre a mesa, tocando o copo com uma das mãos, conversando, com aquela alegria encantadora que Harry tanto apreciava. Mais tarde, uma matinê, alguma coisa que fascinou a ambos, e depois chá no “Cottage”.

“Açúcar? Leite? Creme?” As perguntinhas simples pare­ciam sugerir uma intimidade feliz. E depois, para casa nova­mente, no crepúsculo; e o perfume das violetas de Parma pare­cendo inundar o ar com sua doçura.

“Virei buscá-la às nove”, disse ele, ao deixá-la.

A lareira estava acesa em sua salinha de estar, as cortinas fechadas, havia uma grande pilha de cartas esperando — con­vites para a Ópera, jantares, bailes, um fim-de-semana no rio, uma excursão de automóvel. Ela passou a vista desatentamente sobre elas e subiu para vestir-se. Uma lareira acesa em seu quarto também, e seu vestido bonito, brilhante estendido sobre a cama — tule branco sobre tecido prateado, sapatos pratea­dos, echarpe prateada e um pequeno leque prateado. Rosabel tinha consciência de ser a mulher mais famosa no baile daquela noite; os homens a homenageavam; um príncipe estrangeiro desejava ser apresentado àquela maravilha inglesa. Sim, foi uma noite voluptuosa; uma banda tocando, e seus lindos ombros brancos…

Mas ficou muito cansada. Harry a trouxe em casa e en­trou com ela por um momento. Não havia fogo na lareira da sala, mas a sonolenta criada a esperava na salinha de estar. Ela tirou a capa, dispensou a criada, dirigiu-se à lareira e descal­çou as luvas; a luz da lareira brilhou no seu cabelo, Harry atra­vessou a sala e a tomou nos braços — “Rosabel, Rosabel, Rosabel…” Oh, o porto seguro daqueles braços, e ela estava muito cansada.

(A verdadeira Rosabel, a moça agachada no chão, no es­curo, riu alto e levou a mão à boca quente.)

Naturalmente eles passearam no parque na manhã seguin­te, o noivado tinha sido anunciado no Court Circular; todo mundo sabia, todo mundo estava apertando a mão dela.

Logo depois eles se casaram na Igreja de Saint George em Hanover Square, e foram de automóvel para a antiga herda­de da família em lua-de-mel; os habitantes do lugar lhes fize­ram reverências quando eles passaram; sob as dobras da manta ele apertava as mãos dela com força. E naquela noite ela usou outra vez seu vestido branco e prateado. Estava cansada da­quele dia e subiu para o quarto… muito cedo…

A verdadeira Rosabel levantou-se e despiu-se devagar, colocando as roupas dobradas nas costas de uma cadeira. Ves­tiu pela cabeça a camisola grosseira de chita e tirou os grampos do cabelo — o dilúvio castanho e macio caiu quente em volta dela. Então soprou a vela e andou às apalpadelas até a cama, puxando os cobertores e o acolchoado encardido para bem jun­to do pescoço, encolhendo-se na escuridão… E assim ela dor­miu e sonhou, e sorriu dormindo, e uma vez estendeu o braço procurando alguma coisa que não estava lá, ainda dormindo.

E a noite passou. Logo os dedos gelados da madrugada fecharam-se sobre sua mão descoberta; uma luz cinzenta inun­dou o quarto escuro. Rosabel estremeceu, soltou um pequeno suspiro ofegante e sentou-se. E como sua herança era aquele trágico otimismo, que muito frequentemente é o único legado da juventude, ela sorriu ainda meio adormecida, com um pe­queno tremor nervoso em volta da boca.



Katherine Mansfield
Tradução de Julieta Cupertino