sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
Por baixo da mangueira juntaram-se, num ápice, dezenas de curiosos. Incrível como um lugar deserto se enche subitamente de gente que parece emergir da areia. Olho com cinismo para aquele comércio de interesses.O escritor é uma ave de rapina: pede relatos da guerra. Os aldeões esperam alguma benesse.Um donativo, no linguajar local. Como pode alguém criticar-me pela minha atividade profissional? (...) Pois o escritor é um necrógrafo. Embarcou nesta viagem para debicar desgraças, por entre sobreviventes, cujo luto é o silêncio.
Raspar as feridas do passado: é isso que Gustavo executa ao esgravatar memórias da guerra civil.
- Do que mais se lembram do tempo de guerra?
- Não há nada a lembrar, meu senhor, diz um camponês.
- Como não há?
- Todos voltamos mortos da guerra.
Desvio o rosto. Não quero que se veja a vingança florindo no meu sorriso. Nenhuma guerra se relata.
Onde há sangue, não há palavras.
Mia Couto, A Confissão da Leoa