sábado, 22 de dezembro de 2012

PARA AÍ. Um escritor, senhores, muito bem, o que escreves?

Escrevia, sabem, sobre essa angústia de dentro.

PARA AÍ. Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam, sim porque nos matam a cada dia, um merda escreve sobre o que o angustia, e é por causa desses merdas, desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra desses anêmicos do século, esses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente no peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é tu mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem? Todos que não estão do teu lado te engolem (…) todos esses merdas dessa angústia de dentro. Espera um pouco, moço, não sou desses não, quando falo de mim quero falar de ti, nós dois e todos, nós todos somos um, entende? Vem Ruiska, o moço vai te arrancar a víscera. Espera, anão, o senhor entendeu? Baralho, velho escriba, olha esse cara aqui, sabes quantas vezes por semana esse cara come? Não senhor, não trouxe penico nem medidor. Pois não era preciso, velho escriba, é que não come, só tu é que enches o teu penico, ele come uma côdea seca por semana, não come bife não, come só o enxofre da vida. Alcachofra? Alcachofra para o teu rabo de escriba.

(...) além de sabermos que o teu Jesus nunca existiu, sabemos também que Deus… oh, sabemos… Deus, Lázaro, Deus é agora a grande massa informe, a grande massa movediça, a grande massa sem lucidez. Dorme bem, filhinho.
Meu Deus. Sabe o que me dizem? Dizem: o teu Deus é um porco com mil mandíbulas escorrendo sangue e imundície. Meu Deus. Meu Deus. (...) O teu deus nos cuida assim como os homens cuidam das cobaias, para a morte, para a morte, nós todos a caminho da morte, repasto para o teu Deus e ele lá em cima, insaciável, dizendo: venham meus filhos, venham alimentar-me. O teu Deus está por aí, bocejando com duas bocas: numa, um hálito fétido, noutra, uma rosa. Você escolhe a boca que quiser, meu chapa.


Hilda Hilst,  Fluxo-floema