quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Morris West, O advogado do Diabo

Os calafrios passaram lentamente. O terror cessou e ele se sentiu de novo calmo. A razão apoderou-se dele, e pôs-se a pensar de que modo deveria organizar sua vida durante o tempo que lhe restava.
Ao ficar doente em Roma, quando os médicos italianos  fizeram, em caráter experimental, os primeiros diagnósticos, sua decisão instintiva fora voltar para Londres. Se tinha de ser condenado, preferia sê-lo em sua própria língua. Se tinha de ser reduzido o tempo de vida de que dispunha, desejava, então, passar o que lhe restava dela em meio à suave atmosfera da Inglaterra, a caminhar pelas chapadas gredosas, pelos bosques de faias, e ouvir o canto elegíaco dos rouxinóis à sombra de velhas igrejas, onde a morte era mais familiar e mais afável, pois os ingleses haviam passado séculos a ensinar-lhe boas maneiras.
Na Itália, a morte era rude, dramática — um final de grande ópera, com coros de carpideiras, penachos ao vento e negros ataúdes barrocos a rolar diante de palácios de estuque rumo às criptas de mármore do  campo-santo. Ali, na Inglaterra, seu aspecto era mais gentil: a cerimônia religiosa murmurada discretamente numa nave normanda, a sepultura aberta em grama ceifada entre túmulos batidos pelas intempéries, as libações na taberna de vigas de carvalho, situada logo do lado oposto ao portão coberto de musgo.
Também isso, agora, provava ser uma ilusão, uma falácia patética, não constituindo, de modo algum, couraça contra o cinzento inimigo entrincheirado em suas próprias entranhas. Não podia escapar dele, como tampouco podia fugir à convicção de seu próprio fracasso como sacerdote e como homem.
Que fazer, então? Submeter-se ao bisturi? Abreviar a agonia, truncar o medo e a solidão até um limite exequível? Não seria aquilo um novo fracasso, uma espécie de suicídio que os moralistas talvez justificassem, mas que a consciência não poderia jamais perdoar? Já tinha demasiados débitos para levar ao  seu ajuste de contas final; este último poderia conduzi-lo inteiramente à falência.
Voltar ao trabalho? Sentar-se à velha mesa, sob o teto decorado, no Palácio das Congregações, em Roma. Abrir os enormes in-fólios, onde as vidas, as obras e os escritos de candidatos à canonização, mortos havia muito, eram registrados pela mão de milhares de copistas. Examiná-los, dissecá-los, analisá-los e fazer suas anotações. Questionar suas virtudes e lançar dúvidas sobre as maravilhas que lhes eram atribuídas. Fazer novas anotações em novos manuscritos. E isso com que fim? Para que um novo candidato às honras canônicas talvez viesse a ser rejeitado por ter sido, em vida, menos do que heroico, ou menos do que sábio, em suas virtudes; ou para que daqui a um século, ou talvez dois, um novo papa pudesse vir a proclamar, em São Pedro, que um novo santo havia sido incluído no calendário.
Acaso se  importavam aqueles mortos com o que ele escrevia a respeito deles? Acaso se importavam que se permitisse a uma nova estátua o uso de uma auréola, ou que os impressores pusessem em circulação um milhão de pequenos cartões com seus rostos na frente e uma lista de suas virtudes no verso? Ririam de seus brandos biógrafos ou franziriam a testa diante de seus detratores oficiais? Tinham morrido e sido julgados havia muito, como ele deveria morrer e ser julgado. O resto era tudo adenda, post-scriptum,  e dispensável. Um novo culto, uma nova peregrinação, uma nova missa na liturgia não os comoveriam de modo algum. Blaise Meredith, sacerdote, filósofo, canonista, poderia trabalhar doze meses ou doze anos em seus registros sem que acrescentasse um til à felicidade deles ou um único sofrimento à condenação de suas almas.
Não obstante, aquele era o seu trabalho e ele devia realizá-lo, pois estava entregue às suas mãos — e porque ele estava demasiado cansado e doente para começar qualquer outro. Diria missa todos os dias,  cumpriria diariamente sua tarefa no Palácio das Congregações, pregaria ocasionalmente na Igreja Inglesa, ouviria em confissão seus colegas em férias, voltaria todas as noites ao seu apartamento na Porta Angélica, leria um pouco, faria suas preces e, depois, se debateria nas noites inquietas, até a áspera manhã. Durante doze meses. Depois, estaria morto. Pelo espaço de uma semana, diriam seu nome nas missas...  "o nosso irmão Blaise Meredith"; depois, unir-se-ia aos anônimos e aos esquecidos na lembrança de todos... "todos os fiéis que partiram". Fazia, agora, frio no parque. Os namorados limpavam a relva de seus paletós e as moças alisavam as saias. As crianças eram arrastadas, indiferentes, pelas alamedas, atrás de pais que as repreendiam. Os cisnes voltavam, arrepiados, para as ilhotas, na hora máxima do zunzunar do tráfego de Londres.


Morris West, O advogado do Diabo