Na Calábria, sul da Itália, um culto não-oficial começou a desenvolver-se em torno da memória de Giacomo Nerone. Tendo em vista a possibilidade de um processo de canonização ser necessário, uma investigação foi ordenada pelo bispo de Valenta. Um sacerdote inglês, Blaise Meredith, é escolhido pelo Vaticano para desempenhar as funções de advogado do Diabo: homem cuja obrigação é encontrar e denunciar todos os fatos contra o candidato às honras da santidade.
Meredith, "um homem que traz em seu coração a poeira das bibliotecas", vê-se envolto numa rede de intrigas e dissimulações tecidas pela gente que conhecera Giacomo Nerone: sua amante, que deu à luz um filho dele, um médico judeu, um padre sério e a condessa, rica e bela inglesa que tem algo a ocultar. Sua investigação não apenas põe a nu a verdade sobre Giacomo Nerone, como leva o próprio Meredith a uma comovente e dramática solução de seus próprios problemas como sacerdote e como homem.
Para Paul R. Reynolds ".
...vi debaixo do altar as almas dos que
foram mortos por amor da palavra de
Deus e por amor do testemunho que
deram."
Apocalipse 6, 91
Sua profissão era preparar os outros para a morte; chocava-o, no entanto, o fato de estar tão pouco preparado para a sua própria.
Era um homem sensato, e a razão dizia-lhe que a sentença de morte de um homem já está escrita na palma de sua mão no dia de seu nascimento; era um homem frio, que a paixão pouco inquietava e que, de modo algum, se molestava com a disciplina. Não obstante, seu primeiro impulso fora o de agarrar-se cegamente à ilusão da imortalidade.
Fazia parte da decência da morte surgir sem se fazer anunciar, o rosto coberto e as mãos ocultas, num momento em que era menos esperada. Vinha lenta e suavemente, como seu irmão, o sono — ou, então, rápida e violentamente, como a consumação do ato do amor, de modo que o momento da rendição fosse uma quietude e uma saciedade, em vez da dilacerante separação do espírito e da carne.
A decência da morte. Era a coisa que os homens esperavam, vagamente, a coisa pela qual rezavam, se estavam dispostos a rezar, ou que lamentavam amargamente, ao saber que isso lhes era negado. Blaise Meredith lamentava-o agora, sentado sob o tênue sol de primavera, a observar os cisnes lentos, processionais, sobre o Serpentine, os casais em idílio sobre a relva, os poodles, ajoujados em suas trelas, a caminhar entediados pelas alamedas, junto às saias esvoaçantes de suas donas.
Em meio a toda aquela vida — a relva a germinar, as árvores estuantes de seiva nova, os açafrões e os narcisos a inclinar-se nos ramos, o lânguido namoro dos jovens, o vigor dos passeantes mais velhos — somente ele, parecia, tinha sido assinalado para morrer. Não havia dúvida quanto a urgência ou à finalidade do mandato. Fora escrito, para que todos o lessem, não na palma de sua mão, mas no retângulo de uma chapa fotográfica, onde uma pequena mancha cinzenta enunciava a sentença a que ele estava condenado.
— Carcinoma.
O dedo insensível do cirurgião deteve-se um instante no centro da mancha cinzenta e, em seguida, moveu-se para fora, traçando a difusão do tumor: — De desenvolvimento lento, mas bem nítido. Vi demasiados deles, para que me engane com este.
Enquanto observava a pequena tela translúcida e o dedo espatulado que se movia sobre ela, Blaise Meredith foi assaltado pela ironia da situação. Passara toda a sua vida a fazer com que os outros se defrontassem com a verdade acerca de si próprios, as culpas que os atormentavam, as concupiscências que os degradavam, as loucuras que os diminuíam. Agora, olhava suas próprias entranhas, onde um pequeno tumor maligno se desenvolvia como uma raiz de mandrágora, estendendo-se na direção do dia em que o destruiria.
Perguntou, bastante calmo:
— É operável?
O cirurgião apagou a luz atrás do quadro de exames e a pequena morte cinzenta se extinguiu, opaca; depois sentou-se, ajustando a lâmpada de mesa, de modo a que o seu próprio rosto ficasse na sombra e o de seu paciente, iluminado, como uma cabeça de mármore num museu.
Blaise Meredith notou o pequeno ardil e compreendeu. Eram ambos profissionais. Cada qual, em sua própria profissão, lidava com animais humanos.
Cada qual devia conservar um certo desprendimento clínico, para que não se desgastasse muito e não ficasse tão fraco e medroso como os seus pacientes.
O cirurgião recostou-se em sua cadeira, apanhou um corta-papel e segurou-o no ar tão delicadamente como se fosse um bisturi. Esperou um momento, reunindo as palavras, escolhendo esta, descartando aquela, e juntando-as, depois, numa forma verbal meticulosamente exata.
— Posso operar, sem dúvida. Se eu o fizer, o senhor estará morto dentro de três meses.
— E se não o fizer?
— Viverá um pouco mais e morrerá de maneira um pouco mais dolorosa.
— E quanto tempo mais terei de vida?
— Seis meses. Talvez um ano, no máximo.
— É uma escolha sombria.
— Que o senhor mesmo terá de fazer.
— Compreendo perfeitamente.
O cirurgião sentou-se mais à vontade em sua cadeira. O pior já tinha passado. Não se enganara com respeito àquele homem. Era inteligente, ascético, senhor de si mesmo. Sobreviveria ao choque e procuraria conformar-se diante do inevitável. Quando chegasse a agonia, suportá-la-ia com certa dignidade. Sua Igreja atenderia às suas necessidades e o sepultaria com honra, quando morresse; e, se não houvesse ninguém para chorá-lo, isso também poderia ser contado como uma recompensa final do celibato: sair furtivamente da vida, sem lamentar seus prazeres nem temer as obrigações não cumpridas.
A voz calma, seca, de Blaise Meredith interrompeu-lhe o pensamento.
— Pensarei no que o senhor me disse. Caso eu decida não ser operado... e voltar ao meu trabalho... o senhor me faria a fineza de escrever um relatório ao meu médico? Um prognóstico completo, ou, talvez, uma prescrição.
— Com prazer, Monsenhor Meredith. O senhor trabalha em Roma, não? Infelizmente, não sei escrever em italiano.
Blaise Meredith permitiu-se esboçar um gélido sorriso:
— Eu próprio o traduzirei. Será um exercício interessante.
— Admiro sua coragem, monsenhor. Não professo a fé católica ou, na verdade, qualquer outra fé, mas imagino que o senhor deve encontrar nela, numa ocasião como esta, uma grande consolação.
— Espero que possa, doutor — respondeu, com simplicidade, Blaise Meredith —, mas sou sacerdote há demasiado tempo para que alimente tal esperança.
Agora estava sentado, ao sol, num banco de jardim, com o ar pleno de primavera e o futuro apenas uma breve e vazia perspectiva a derramar-se na eternidade. Certa vez, em seus dias de estudante, ouviu um velho missionário pregar acerca da ressurreição de Lázaro: como Cristo se detivera diante do sepulcro selado e ordenara que o mesmo fosse aberto para que o cheiro da podridão se desfizesse no ar parado e seco do verão; como Lázaro, atendendo ao chamado, saíra, a tropeçar na mortalha, e ficara de pé, a piscar sob o sol. Que sentira ele naquele momento?, indagara o velho. Que preço havia ele pago por aquela volta ao mundo dos vivos? Acaso continuou para sempre,depois, estropiado, de modo que cada rosa lhe cheirasse a podridão e cada jovem dourada lhe parecesse um esqueleto desengonçado? Ou caminhou cheio de deslumbramento diante da novidade das coisas, o coração terno de piedade e amor pela família humana?
Essa especulação interessara a Meredith durante anos. Chegara, mesmo, em certa ocasião, a alimentar a ideia de escrever uma novela a respeito. Agora, finalmente, ele tinha a resposta. Nada era tão doce ao homem como a vida; nada mais precioso do que o tempo; nada mais tranquilizador do que o toque da terra e da relva, o sussurro da brisa, o som de vozes, do trânsito e dos pássaros. Eis aí o que o perturbava. Há vinte anos era sacerdote, votado à afirmação de que a vida era uma imperfeição passageira, a terra, um pálido símbolo de seu criador, a alma, uma coisa imortal na argila mortal, a debater-se fatigada em busca de libertação nos braços acolhedores do Todo-Poderoso. Agora, que sua própria libertação lhe era prometida, com data marcada, por que não podia ele aceitá-la, se não com alegria pelo menos com confiança?
A que se aferrava ele que já não tivesse, havia muito, rejeitado? Uma mulher? Um filho? Uma família? Não havia criatura viva alguma que lhe pertencesse. Bens terrenos? Estes eram bem poucos: um pequeno apartamento próximo da Porta Angélica, alguns objetos de adorno, uma sala cheia de livros, um modesto estipêndio da Congregação de Ritos, uma renda anual que a mãe lhe deixara. Nada que pudesse tentar um homem que se encontrava no limiar da grande revelação. Carreira? Talvez houvesse algo, aí... Auditor da Sagrada Congregação de Ritos, assistente pessoal do próprio prefeito, o Cardeal Eugênio Marotta. Era uma posição de influência, de lisonjeira confiança. A gente sentava-se à sombra do pontífice. Observava o funcionamento complexo, sutil, de uma grande teocracia. Vivia-se com simplicidade, mas confortavelmente. Tinha-se tempo para estudar, liberdade para agir sem peias dentro dos limites da prudência e da discrição. Talvez houvesse algo, aí... mas não o bastante: nem a metade do que seria necessário a um homem que ansiasse pela União Perfeita que pregava.
Talvez estivesse aí a essência da coisa. Ele jamais ansiara por coisa alguma. Sempre tivera tudo o que desejara, e jamais desejara nada além do que estava ao seu alcance. Aceitara a disciplina da Igreja, e a Igreja dera-lhe segurança, conforto e escopo para o exercício de suas aptidões naturais. Conseguira maiores satisfações em sua vida do que a maioria dos homens — e, se não pedira jamais a felicidade, foi porque nunca tinha sido infeliz. Isso, até então... até aquele desolado momento ali, ao sol, o primeiro sol da primavera, a última primavera que Blaise Meredith jamais teria.
A última primavera, o último verão. O troco final da vida, mastigado e chupado até ficar seco como um bastão de açúcar-cande que se lança depois ao lixo. Havia ali amargura, o gosto azedo do fracasso e da desilusão.
Que mérito poderia ele computar e levar consigo para o Juízo Final? Que é que deixaria atrás de si, para que os homens quisessem lembrar-se dele?
Jamais gerara um filho, plantara uma árvore ou colocara pedra sobre pedra na construção de uma casa ou monumento. Não tivera ódios, mas também não dispensara caridade. Seu trabalho se desfaria em pó nos arquivos do Vaticano. Qualquer virtude que acaso tivesse florescido em seu ministério era sacramental, e não individual. Os pobres não o abençoariam pelo seu pão, nem os enfermos pelo consolo de suas palavras, nem os pecadores pela salvação de suas almas. Fizera o que dele haviam exigido; não obstante, morreria vazio e, dentro de um mês, seu nome seria um pouco de pó soprado sobre o deserto dos séculos.
Súbito, sentiu-se aterrorizado. Um suor frio inundou-lhe o corpo. Suas mãos começaram a tremer, e um grupo de crianças que brincavam com uma bola junto a um banco próximo se afastou do macilento clérigo que ali estava sentado, a fitar, com olhos que não viam, as águas tremeluzentes do lago.
Morris West, O Advogado do Diabo