MaXu |
A amiga com quem fui feliz chega a casa, despe o traje de seduzir, dobra-o cuidadosamente. veste o fato de treino, liga a televisão e pedala na bicicleta de ginástica durante meia hora. Tantas vezes lhe pedi que comprasse uma bicicleta a sério e fosse pedalar no jardim. Ou que tentasse fechar as portas de mansinho, em vez de bater com elas e de me acordar sem querer. Ou que não cantarolasse enquanto eu ouvia as notícias. Ria-se, insistia. Creio que julgava que esses pormenores lhe conferiam um valor distintivo. Ou talvez a ira que estes hábitos me causavam fosse para ela um despertar de sensualidade. Sempre que a minha irritação atingia o rubro, ela desatava a rir, e o riso suavizava-me. Nada do que eu fizesse ou dissesse podia afastá-la de mim - era essa a sua força, uma força maligna que me instigava os limites.
Não duramos um mês de solidão. Em tribo, a minha vontade de esventrar aquele amor inoxidável dormia num casulo sem tempo.
Acreditei que na amizade encontraria o sabor mítico da correspondência absoluta, a felicidade sincrônica com que o amor apenas brinca. Mas também a amizade se mostrou vulnerável ao tédio e à decepção. Tudo o que tocamos se desfaz. Depois fica-nos o vício da decomposição, o perfume intoxicante das coisas mortas. Pode-se dormir no ombro de alguém uma vida inteira e morar noutros corpos, que nunca se tocaram. O sonho.
Inês Pedrosa, Fazes-me falta