terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Franz Kafka, A metamorfose

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.

“O que terá acontecido comigo?”, ele pensou. Não era um sonho. Seu quarto, um quarto humano direito, apenas um pouco pequeno demais, encontrava-se silencioso entre as quatro paredes bem conhecidas. Sobre a mesa, na qual se espalhava, desempacotada, uma coleção de amostras de tecido – Samsa era caixeiro-viajante - , estava a imagem que ele havia recortado havia pouco tempo de uma revista ilustrada e posto numa moldura bonita e dourada. Ela mostrava uma dama que, escondida num chapéu de pele e numa estola de pele, sentava ereta e levantava aos espectadores um regalo também de pele, dentro do qual sumia todo o seu antebraço.

O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela, e o tempo nublado – ouviam-se os pingos da chuva baterem sobre a calha da janela – deixou-o bastante melancólico. “Que tal se eu seguisse dormindo mais um pouco e esquecesse de toda essa bobajada”, pensou; mas isso era totalmente irrealizável, uma vez que estava habituado a dormir sobre o lado direito e em seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. Por mais força que fizesse na tentativa de se jogar para o lado direito, balançava voltando sempre a ficar na posição de costas. Deve ter tentado fazê-lo cerca de cem vezes; fechou os olhos a fim de não precisar ver mais suas pernas se debatendo, e apenas desistiu quando passou a sentir no lado uma dor leve e sombria, que jamais havia sentido. 


"Oh, Deus", pensou ele, "que profissão extenuante que fui escolher! Entra dia, sai dia, e eu sempre de viagem. As agitações do negócio são muito maiores do que propriamente o trabalho em casa, e ainda por cima impuseram sobre mim essa praga de ter de viajar, os cuidados com as conexões de trem, a comida ruim e desregulada, contatos humanos sempre cambiantes, que nunca serão duradouros e jamais afetuosos. Que o diabo leve tudo isso!" Sentiu um leve comichão acima, sobre o ventre, deslocou-se devagar sobre as costas, aproximando-se da guarda da cama, a fim de poder levantar melhor a cabeça; encontrou o lugar que comichava; ele mostrava-se tomado por uma série de pontinhos brancos e pequenos, que ele não logrou avaliar donde vinham; quis tocar o local com uma das pernas, mas logo puxou-a de volta, pois o contato lhe dava calafrios.

Deslizou até voltar à sua posição anterior. "Esse acordar cedo", pensou ele, "faz a gente ficar meio abobado. O homem tem de ter seu sono. Outros viajantes vivem como mulheres de harém. Quando eu, por exemplo, volto ao hotel pouco antes do meio-dia, a fim de transcrever as encomendas feitas, esses senhores recém estão tomando seu café. Queria ver se eu tentasse proceder assim com meu chefe; iria para a rua na mesma hora. Aliás, quem sabe se isso não seria bom para mim. Se eu não me contivesse por causa de meus pais, já teria pedido as contas há tempo; teria me apresentado ao chefe e lhe exposto direitinho o que penso, do fundo do meu coração. Ele teria de cair da escrivaninha! É um jeito bem peculiar o dele, de sentar-se sobre a escrivaninha e falar do alto abaixo com seu empregado, que além do mais tem de se aproximar bastante por causa das dificuldades auditivas do chefe. Bem, a esperança ainda não está de todo perdida; quando eu tiver juntado o dinheiro a fim de quitar a dívida de meus pais com ele – acho que isso demorará ainda uns cinco ou seis anos –, eu encaminho a coisa sem falta. Aí então terá sido feito o grande corte. Por enquanto, em todo caso, tenho de levantar, pois meu trem sai às cinco."




Franz Kafka, A metamorfose