quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
"Chegamos. Tenho medo. Um pequeno vestíbulo. Depois a rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia. Queria tanto ficar nesse chão inundado de sol, queria até...ser um animal, se não fosse possível ser eu mesmo, queria agarrar-me a túnica das mulheres feito uma criancinha, olho para o sul, para o norte, para todos os lados, ah, Bendito, tudo em mim não quer morrer! Agora sei como estou preso a esse todo que sou, aspiro, duas, três golfadas distendem o meu peito, seguro os ombros
de Marta e grito: Marta, Marta, ainda não estou pronto para ficar na treva, ainda tenho tanto amor, ainda tenho mãos para trabalhar a terra, toca-me, vê como essa carne é viva, olha-me, Marta, eu que sou tão você, olha-me, eu que amo a tua força, os teus pés colados à terra, a tua lucidez. É inútil. O meu corpo foi depositado no seu lugar. Estou acima dele, a uma pequena distância. Pairo sobre ele.
(...) Rolam a pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. Pronuncio vagarosamente: bendito sejas Tu, Deus grande, valoroso e terrível, bendito sejas Tu, Eterno."
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" Oh, Lázaro, filhinho, eu também acreditava Nele como tu. Muitos acreditavam Nele. Os mais humildes acreditavam Nele. E só posso te dizer que todos os que acreditavam Nele morriam mais depressa do que os outros. E não penses que morriam de morte serena, afável – se é que se pode usar tais termos para a morte – o que eu quero dizer é que nenhum cristão morria simplesmente. Morriam cuspidos,
pisados, arrancavam-lhes os olhos, a língua. Lembro-me de um cristão que carregava o crucifixo e gritava como tu: está vivo! Ele está vivo! Sabes o que fizeram? Pregaram-lhe o crucifixo na carne
delicada do peito e urraram: se Ele está vivo, por que não faz alguma coisa por nós? Se Ele está vivo, por que alimenta o ódio, o grito, a solidão dentro de cada um de nós? Se Ele está vivo, por que não nos
dá esperança? O sangue do homem salpicava-lhes as caras, e o coitado só repetia esta palavra: a cruz! A cruz! Aí foram tomados de fúria: ouviram? O porco quer nos legar a cruz! Como se não nos
bastasse a vida! E pisotearam-no até a morte. Muitos morreram de uma forma muito mais cruel do que essa."
Hilda Hilst