"Mas, enquanto se liberta da sua vida", pensava ela, "outros Katows são queimados nas fornalhas, outros Kyros..."
O olhar de Gisors, como se tivesse seguido o gesto de esquecimento, perdeu-se ao longe: pra lá da estrada, os mil ruídos de trabalho do porto pareciam voltar com as vagas para o mar resplendente. Correspondiam ao deslumbramento da primavera japonesa com o esforço dos homens, com os navios, os elevadores, os automóveis, a multidão ativa. May pensava na carta de Pei: era no trabalho enérgico desencadeado por toda a terra russa, na vontade de uma multidão para quem esse trabalho se fizera vida, que se tinham refugiado os seus mortos. O céu raiava nos esboços dos pinheiros como sol; o vento que inclinava molemente os ramos deslizou-lhes sobre os corpos estendidos. Pareceu a Gisors que esse vento passava através dele como um rio, como o próprio tempo, e, pela primeira vez, a ideia de que passava por ele o tempo que o aproximava da morte não o separou do mundo, antes o ligou a este num acordo sereno. Fitava o amontoado de guindastes ao fundo da cidade, os paquetes e os barcos no mar, as manchas humanas na estrada. "Todos sofrem", pensou, "e cada um sofre porque pensa. No fundo, o espírito só pensa o homem no eterno, e a consciência da vida só pode ser angústia. Não se deve pensar a vida com o espírito, mas com o ópio. Quantos sofrimentos dispersos nesta luz desapareceriam, se desaparecesse o pensamento..." Liberto de tudo, mesmo de ser homem, acariciava com reconhecimento o cano do cachimbo, contemplando a agitação de todos esses seres desconhecidos que caminhavam para a morte ao deslumbrante sol, cada um acariciando no mais secreto de si o seu parasita assassino. "Todos os homens são loucos", pensou ainda, "mas que é um destino humano senão uma vida de esforços para unir esse louco e o Universo?..." Tornou a ver Ferral, iluminado pela lâmpada baixa, na noite cheia de bruma, ouvindo: "Todo homem sonha ser deus..."
Cinquenta sirenas ao mesmo tempo invadiram o ar; aquele dia era véspera de festa, e o trabalho acabava. Antes de qualquer mudança no porto, homens minúsculos atingiram, como batedores, o caminho direito que levava à cidade, e em breve a multidão enchia-o, longínqua e negra, num barulho de buzina: patrões e operários largavam ao mesmo tempo o trabalho. Vinha como ao assalto, com o grande movimento inquieto de toda multidão contemplada a distância. Gisors vira a corrida dos animais para as fontes, ao cair da noite: um, algum, todos precipitados para a água por uma força caída com as trevas; na sua recordação, o ópio dava à corrida cósmica uma harmonia selvagem, e os homens perdidos no longínquo barulho dos socos pareciam-lhe todos doidos separados do Universo, cujo coração, batendo algures, no alto, na luz palpitante, agarrava-os e atirava-os para a solidão, como os grãos de uma colheita desconhecida. Ligeiras, muito altas, as nuvens passavam por cima dos pinheiros sombrios e sumiam-se pouco a pouco no céu; e pareceu-lhe que um dos seus grupos, aquele precisamente, exprimia os homens que conhecera ou amara, e que estavam mortos. A humanidade era espessa e pesada, pesada de carne, de sangue, de sofrimento, eternamente colada a si mesma como tudo o que morre; mas mesmo o sangue, mesmo a morte sumiam lá longe na luz, como a música na noite silenciosa: pensou na de Kama, e a dor humana pareceu-lhe subir e perder-se como o próprio canto da terra; na paz tremente, e escondida nele como o coração, a dor possuída fechava lentamente os braços inumanos.
- Fuma muito? - repetiu ela.
Já lho perguntara, mas ele não atinha ouvido. O seu olhar voltou à sala:
- Julga que não adivinho o que pensa, e julga que eu não o sei melhor que você? Julga mesmo que me não seria fácil perguntar-lhe com que direito me condena?
Olhou-a:
- Não deseja ter um filho?
Ela não respondeu: esse desejo sempre fervoroso parecia-lhe agora uma traição. Mas olhava com espanto aquele rosto sereno. Voltava na verdade do fundo da morte, estranho como um dos cadáveres das valas comuns. Na repressão que caíra sobre a China esgotada, na angústia ou na esperança do povo, a ação de Kyo continuava incrustada como as inscrições dos impérios primitivos nas gargantas dos rios. Mas mesmo a velha China que esses poucos homens tinham atirado sem retorno às trevas, com um estrondo de avalancha, não estava mais apagada do mundo que o sentido da vida de Kyo do rosto do pai. Ele continuou:
- A única coisa que eu amava foi-me tirada, não é verdade? e quer que eu permaneça o mesmo. Julga que o meu amor não valeu o que vale o seu para você, cuja vida nem sequer mudou?
- Como não muda o corpo de um vivo que se torna um morto...
Ele pegou-lhe na mão.
- Conhece a frase: "São precisos nove meses para fazer um homem, e um só dia para o matar". Nós soubemo-lo tanto quanto se pode saber, um e outro... May, ouça: não são precisos nove meses, são precisos cinquenta anos para fazer um homem, cinquenta anos de sacrifício, de vontade, de... de tanta coisa! E quando esse homem está feito, quando nada mais há nele da infância, nem da adolescência, quando, verdadeiramente, ele é um homem, nada mais resta senão morrer.
Ela fitava aterrada; ele olhava as nuvens:
- Amei Kyo como poucos homens amam os filhos, bem sabe...
Continuava a segurar-lhe a mão, chegou-a para si, tomou-lha nas suas:
- Ouça-me: temos de amar os vivos, e não os mortos.
- Eu não vou a Moscou para amar.
Ele contemplava a a baía magnífica, cheia de sol. Ela retirara a mão.
- No caminho da vingança, May encontra-se a vida...
- Não é uma razão para a chamar.
Ela levantou-se, estendeu-lhe a mão em sinal de adeus. Mas ele segurou-lhe o rosto entre as palmas das mãos e beijou-lho. Kyo beijara-a assim, no último dia, exatamente assim, e nunca mais quaisquer mãos lhe tinham agarrado a cabeça.
- Agora já não choro - disse ela, com um orgulho triste.
André Malraux, A Condição Humana