quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Sem que de nada tivesse adiantado o Titanic




Pintava a casa. Todos os dias, depois do trabalho, pegava lata e pincel, arrastava a escada para junto da parede e retomava o serviço iniciado tantos anos antes.

"Uma casa é como um navio", sentenciava cheio de sabedoria. "Quando a gente acaba de pintar de um lado, o outro já está pedindo tinta".

E à noite, na cama, virando-se para dormir, dizia para a mulher sobre a felicidade da vida em comum: "O importante é a manutenção".

Pintado, conservado, o casamento ia singrando o tempo. E ele tão seguro ao leme, que não viu quando aquele homem manobrou para aproximar-se da sua mulher. Não se deu conta quando abordou. Não percebeu quando entrou em rumo de colisão. Não acreditou quando abalroou o amante quase invisível.

E continuava no leme, sem acreditar, pintando e emassando, quando seu casamento, lentamente, naufragou.


Marina Colasanti
"Contos de Amor Rasgados", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986