segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Primeira parte: Como se faz um homem



Nove

Fora das ordens e da execução das ordens, pouco havia a dizer. E começava a fazer falta o que não se dizia. Ermelinda rodeava-o sem se aproximar; ele, mal olhando, adivinhava-a. E Vitória cavalgava pelo campo.
Para ela, Martim continuava a ter o ar de quem poderia rir de um momento para outro, como o rosto inexpressivo de um palhaço sob uma pintura maliciosa: Vitória se inquietava. E exasperava-se com o silêncio de Martim. A estupidez do homem a sufocava, mas ela não tinha como acusá-lo pois seu trabalho, apesar de lento, era perfeito. Vitória se inquietava. Sua própria força foi de certo modo aumentando, a mulher parecia se desenvolver cada vez mais e se afirmar.
E de tarde, quando o calor enfim diminuía, ela ficava de pé no alpendre a olhar as coisas que pouco a pouco se transformavam pela sua vontade. Então sua ambição crescia sem objetivo como um calor. E nascia-lhe o desejo de inventar novas ordens apenas para experimentar o que sucederia: ela era a perturbada dona daquilo tudo, e perturbava-se. Encolerizava-a que houvesse noites de permeio, durante as quais nenhum trabalho se adiantava; e, quanto ao homem dormindo no depósito, isso lhe parecia de uma petulância que, se ela tolerava, é que nada podia fazer. Também de dia, em certa hora, irritava-a saber o homem metido no curral a cuidar indefinidamente das vacas, cumprindo com excesso de docilidade uma ordem que ela lhe lançara apenas uma vez. E de novo vinha a noite com sua exasperante interrupção. Ela mal podia esperar pelo dia seguinte, e sua sensação de poder já era tão grande que se tornara inconfortável e inútil.
Era desse modo pesado que o trabalho ia aos poucos progredindo. Ao ruído da charrua, Vitória fechava os olhos, o peito agitado. Sob o calor cada vez mais forte, o trabalho progredindo. O que no entanto lhe parecia devagar demais: a mulher de pé no alpendre desabotoou a gola da camisa sem poder respirar. É que, vinda de parte nenhuma, a ameaça da seca se aproximava rodeando-os de calor brilhante. Cada dia o sol custava mais a morrer. Era uma agonia que a mulher suportava de pé, sozinha. Mesmo depois de desaparecido o sol, a fazenda ficava a reverberar por um tempo indeterminável e inquietante. De dia era aquele faiscar, aquelas marteladas, o suor. Mas a noite — ela bem sabia — não seria uma trégua. A noite das secas conserva em seu bojo uma radiosa profundidade como uma luz encerrada em dura noz.
A mulher no alpendre mordeu distraída a mão até que, de olhos subitamente severos, olhou a própria mão magoada. Nessa noite ficou até tarde no alpendre, examinando apreensiva os milhares de estrelas que a estranha limpidez na escuridão deixava ver. Apurou inquieta o ouvido, era verdade: cada vez se ouviam menos sapos, eles estavam desertando. . .
Pelo menos enquanto esteve no alpendre, lidando com estrelas e perscrutando a vibrante secura da noite, ela ainda era poderosa pois estava trabalhando, friamente trabalhando e calculando. Mas na hora de dormir, a miséria a envolveu. Uma miséria ativa que nada pedia. E, por mais forte que ela tivesse sido durante o dia, tornou-se então menor, calada, insondável. A pobreza a invadiu como uma meditação. A mulherzinha ficou deitada na cama, calma, olhando o teto. E como ninguém poderia entendê-la, ela em vingança, de olhos abertos, ferida, calculava — calculava ferida como um preso na sua cela. E cada noite seu passo ia mais longe, cada noite sua ameaça obscura ia velar o sono indecente do homem feliz.
Com o vigor da manhã, a sensação de desconforto em relação ao homem se dissolveu, mal ela descobriu outro campo de ação: um formigueiro que era preciso destruir, o poço aberto que não lhe parecia bastante profundo e junto do qual ela bateu o pé impaciente. Depois, já não pareceu saber ao certo que ordem queria dar, sentia à sua disposição aquele homem calado que faiscava ao sol, calado e de olhos abertos. Então o seu próprio poder lhe pesou, ela galopou de um lado para outro no campo, dando mais ordens, fixando autoritária e interrogativa o misterioso horizonte enxuto, ela que não podia se dar ao luxo de não ser poderosa, distribuindo sua ríspida eficiência entre galopes — e não havia solução, a camisa se colou ao corpo suado, ela temia que quanto mais poderosa fosse, tanto mais teria que se ver livre da própria força. Mas não havia como sair da situação em que se tinham posto as coisas e como escapar antes que ela tivesse mandado excessivamente no homem passivo e na fazenda maleável — antes que o homem de repente risse? ou que de repente as terras do sítio se abrissem em gretas áridas. Então a cólera a tomou: um dia ela saberia o que o homem viera fazer no sítio.
Nesse ínterim a fazenda se embelezava.
A fazenda se embelezava, e, com o calor, a tensão aumentava como uma felicidade excessiva, os dias se sucediam claros, largos. Como sinal de perigo, havia apenas o acordo em que todos pareciam viver. E a felicidade. Vitória nunca tinha sido tão feliz, e quem sofria era o cavalo chicoteado cuja boca se abria em espanto. Foi ao ser esporeado que o cavalo escoiceou e disparou — a mulher, pegada de surpresa, perdeu o equilíbrio, agarrou-se feroz ao pescoço do cavalo. O frio percorreu as costas da mulher, ela respirava aterrorizada, sem coragem de largar aquele pescoço pesado, suas pernas tremiam: manteve-se imóvel e de olhos fechados, deixando o baio de rédea livre levá-la ao pasto, deixando-o abaixar a cabeça indomável para comer. O corpo inteiro da mulher acompanhou humilde a cabeça do cavalo para o feno, de olhos fechados o sentia comer, era uma paz estranha a de ser guiada pela desorientação do cavalo, a fazenda se embelezava, o vento soprava, lágrimas de raiva correram pelo rosto de Vitória.
—  Quanto tempo o senhor fica por aqui? perguntou então ao homem, pronta a despedi-lo sem se indagar por quê.
—  Não sei, respondeu ele continuando a cavar.
—  Como não sabe! indagou rígida.
Esquecida de que estava prestes a mandá-lo embora, olhou-o afrontada. Pareceu-lhe uma injúria aquele homem jogando com o tempo e trazendo dúvida ao correr mecânico dos dias, trazendo a estes uma liberdade assustadora como se a cada dia se pudesse de súbito dizer sim, ou não. Trazendo indecisão a ela que, se perguntada quanto tempo ficaria ali, responderia “não sei”, significando tempo ilimitado fora de seu controle — e não, como para ele, tempo curto.
Sim, tempo curto. Sem ligar uma ideia a outra, Vitória pareceu agora querer que o homem trabalhasse depressa e dobrado, e que o poço, cuja perfuração ela o obrigara a interromper para iniciar o trabalho das cercas de limite, recomeçasse imediatamente.
— Mas por que é que ele não sabe se fica? sobressaltou-se Ermelinda.
Ermelinda andava nervosa, com dores de cabeça e palpitações. “Por que é que ele não sabe se fica?” E como se lhe tivessem cortado a possibilidade de esperar por um tempo mais favorável e por um amadurecimento natural, a moça se sentiu acuada, forçada a se definir antes que o homem fosse embora, e a ter a fruta verde mesmo, mesmo incompreensível ainda. Quaisquer que fossem as obscuras etapas do amor, estas agora teriam que decorrer mais rápidas. Para não se atrapalhar com pudores, Ermelinda já esquecera o que queria do homem. Procurava apenas recuperar aquele instante em que o amor, junto da lata de milho, fora fatal e grande — houvera esse instante apenas, numa tarde já agora perdida para sempre. Mas naquele instante também a morte lhe parecera um ritual de vida — houvera aquele instante em que ela defrontara a morte com a mesma magnitude, como quem olha a distância.
Mas era inútil: com o instante perdido, ela perdera contato com a fatalidade. E de novo via na morte apenas a burla e a mesquinhez. E também ela se tornara de novo mesquinha a ponto de ter medo de morrer, e era avarenta e sonsa, e burlava porque se sentia burlada.
No entanto algo lhe dizia que ninguém podia morrer sem antes resolver a própria morte. Ela olhou em torno aflita. A abelha, de algum modo, resolvera: ela viu a abelha voar. E assim também Francisco. Que, mudo, concentrado, estava dando água à mula. Como se dar água à mula, desse modo silencioso, fosse um sinal de estar preparado. Ermelinda o olhou com inveja. Mas ela, ela era mesquinha: não perdoava a morte. O que queria de Martim, nunca saberia dizer: queria obscuramente que através dele sua vida tomasse o tamanho de um destino. Estava confusa, sabia apenas que tinha que se precipitar pois o tempo se tornara curto.
E, falsa, calculada, procurava se pôr de algum modo em transe de amor. Até que finalmente, de tanto olhar o homem e de tanto se empurrar e exigir de si, de novo começou a sentir aquele mal-estar. Então, radiante, enfraquecida pelo esforço, ela o amava. O campo lhe parecia vazio, cinzento, ela via a relva doente junto do galinheiro, vias as nuvens sujas, as galinhas cacarejavam fracas dando corridas velozes, a dissonância das rodas do arado irritava-a: era amor, sim. Tanto que se o homem aparecia ao longe com a enxada — então — então acontecia isso: lá estava ele!
Lá estava ele. Envolvido pelo poder que ele tinha sobre ela e que ela mesma lhe conferira.
Até que finalmente Ermelinda chegou ao ponto em que já não se perguntava mais se o amava. Já não se pejava de observá-lo escondida atrás da cerca, e cada traço do rosto do homem ela redescobria com uma exclamação de reconhecimento e surpresa. E quando descobria, infatigavelmente pela milési¬ma vez, que os olhos do homem eram claros, surpreendia-se de que tanto fosse dado a ela, uma mulher. A dele era uma boca fina, e aquela beleza extraordinária que só um homem tinha e que a deixava muda, com vontade de fugir — o que fazia com que ela o vigiasse encarniçada. Tremia de medo de deixar de amá-lo. Nunca se aproximara dele, e entre ambos sempre havia a distância. Mas aos poucos a moça espiritualizara a distância e terminara por torná-la um meio perfeito de comu¬nicação. A um ponto que, agora, só a distância constituía espaço suficiente para ela desdobrar seu amor e atingir o ho¬mem: perto dele sentia-se incomodada por ele próprio, e não sabia como lhe dar todo o amor.
O que não impedia que a moça se tivesse tornado muito ativa: calculava cuidadosa os passos que teria que dar, alimen¬tando o que sentia com uma previsão de assassino. Tomava banho com ervas de cheiro, cuidava mais de suas roupas de baixo, comia muito para engordar, procurava se emocionar com o pôr-do-sol, acariciava com intensidade os cães da fazenda, branqueava os dentes com carvão, protegia-se contra o calor para se manter bem alva, ficava apreensiva por ver quanto suava. Um dia experimentou dizer-se uma coisa só para ver se dava certo: “quero ser o sapato que ele usa, quero ser o machado que ele pega na mão” — e depois aguardou muito atenta; e deu tão certo que, de emoção, ela abaixou os olhos modestos, confusa, escondendo como pôde um sorriso.
Mas nem sempre Ermelinda precisava se provocar. Às • vezes o amor a assaltava inesperado. Foi quando, mexendo na escrivaninha de Vitória para procurar uma tesoura, encontrou a lista de instrumentos que Martim fizera por ordem da dona do sítio. Antes mesmo de pensar, teve a certeza de que a letra era dele. Porque seu coração bateu como se ela lesse o próprio segredo do homem: “uma pá maior, duas foices”, continuou a ler. E o que ele escrevera deu-lhe tal impressão de maturidade que lhe fez mal. As palavras lhe pareceram cheias e dolorosas, pesadas de si mesmas. Era pungente sentir a força do homem nas palavras, uma força imóvel e contida — e no entanto toda ali diante dela como uma fruta que daquele ponto em diante só poderia murchar. Como Ermelinda era rápida, a ideia vaga de fruta a levou à ideia de “colheita da morte”, pois assim lera, e até gravuras vira a respeito. Oh! meu amado, pensou então, mas seu coração pesado não sabia se exprimir. As mãos dele, que haviam escrito “aquelas palavras tão singelas”, eram grandes e feias, entristeciam-na. Ah! meu amado, disse num final que era resignação. E enquanto se perguntava se no amor ela daria e receberia vida, roubou a lista que o homem fizera e guardou-a no quarto. “Meu modo de amar é tão bonito!”, achou ela. Nunca tinha sido tão feliz. Na verdade nem sequer chegava a precisar que ele a amasse. No egoísmo de sua felicidade, pensava assim: pena que ele não sinta o que sinto, ele não sabe o que perde.
Na sexta-feira, como ele estava perto, ela lhe disse enfim o seguinte:
—  Estou morrendo de calor.
E seus olhos se encheram de lágrimas: porque ela não dissera nada, por assim dizer. Então mais tarde disse humilde para Vitória:
—  O calor está rigoroso. Mas Vitória respondeu-lhe:
—  Frio é que se chama de rigoroso, não calor.

Clarice Lispector