Trinta anos, Tadeu, ela vai dizer trinta anos, ou se Rute dissesse nova: olha, pegaremos um barco, um navio, e tudo vai mudar, sem perceberes roubas a paisagem à tua frente e ela se engasta lá no teu de dentro e ficas novo sem deixares de ser esse Tadeu, o outro, a calma daquelas águas, as mais fundas, e a mesma volúpia há de voltar, quantas vezes me disseste que a vida se fazia em ti quando me tocavas, toca-me neste instante, sou a mesma, é porque envelheci que não me tocas? Se ela dissesse, mas ainda não seria isso. Se eu dissesse a verdade, a minha: Uma coisa viva rubra aquosa fez-se aqui dentro, Rute, aqui no peito. Sorriria. A mão sobre a nuca, ajeitando a fivela nos cabelos: isso é poesia. Verdade, Rute. Como se o ar de fora nunca cintilasse, como se tu visses a vida escorrer sempre através do vidro, vidraça cheia de dedos estigma das tuas falanges na vidraça, inútil não querer insistir nas diferenças, diferenciados tu e eu, eu e o outro, eu e a empresa, blocos nítidos e separados
quando eu morrer cobre-me a cara com as minhas pedras de ágata
cobre-me o corpo de papéis e o duro das palavras
enfia-me na grande gaveta da minha mesa
Rotina imunda esfarelando o que eu pensava que seria definitiva cintilância, como é que eu posso amar o outro se eu sou o funil mais fundo, o comprido buraco fervilhando de negras espirais de jade, levanto-me, tudo está posto, composto, o roupão de flanela, o marron de tecido fosco nas beiradas, sento-me um pouco na poltrona cor de ouro, semiobscuridade do quarto, cheiro de linho lavado, tudo limpo-Rute, não há manchas nos lençóis esticados imaculados,
Tenho mania de roupas brancas, Tadeu, que magnífica simetria nos nossos armários, incrível tocar nos estufados rolos brancos. Semiobscuridade do quarto, uma tarde estarei aqui, na cama, uma noite, na manhã (quando?) estarei aqui em agonia, suor e urina encharcando os linhos da ilha, imaculados estarão os lençóis sobre as prateleiras, dentro do armário a ordem e ramos de alecrim
O que é que você põe nos lençóis, Rute?
Dentro do armário uma incorruptível seriedade, Tadeu impoluto alguém te disse, quem? ah, sim, aquela mulher absurdamente viva, um dia no bar entre os sócios fundadores aquele que Rute dizia que eu minimizava a espantosa habilidade. Bizarra amiga-mulher, a do bar, onde agora? ela me olhava como se soubesse de mim, que eu ali no bar empresa sócios fundadores estertorava de tédio de horror, daqui a pouco é preciso voltar para casa e começar tudo de velho, o banho quente, o sabão importado, os mármores perfeitos, as toalha da melhor qualidade, sim a casa é toda lavanda alecrim maçãs laranjas torradas, Rute é de pêssego Que foi, Tadeu? Nada, estou aqui sentado. A reunião não é às dez? te sentes bem? Se todos se sentissem como eu, demasiadamente possuído por alguma coisa inominável... o que é? escalar a montanha? nadar no rio cheio de crocodilos? engolir uma serpente? ficar nu e lançar-me do terraço do quarto, os braços abertos e um grande urro durante o percurso?
Me sinto muito bem, estava apenas pensando
No Balanço? Impulsiono o balanço de repente, Tadeu nos ares, flutua, agora desce, coloca a planta dos pés sobre a areia, senta-se e contempla ao redor, montanha mar extensão tremulosa, corpo aquecido e livre repensando o seu estar no mundo como quem nunca esteve no mundo porque desde sempre consumiu-se na aparência, trancou-se, que coisa tinha Tadeu a ver com os outros? Ouro pensando no tornozelo e no pescoço, e o primeiro elo da corrente? Na empresa. PODER quer dizer Tadeu sentado na extremidade da mesa, os sócios cinco rescendendo a lavanda inglesa os papéis as cifras, a lisura do branco os algarismos santos, estilete de luz pousando no Ativo e no Passivo, Balanço-Gólgota do sistema, Otimização Satisfatório Satisfaciente, verdura-rúcula-de prata na bandeja de nós dois, Tadeu e Rute, turquesas de sobremesa, homem-sério Tadeu, olhar nunca para o céu, isso nunca, apenas em alguma madrugada lívido hei de olhar para esse fundo, Rute estará ao lado aromatizada, hei de dizer abre mais a janela Abafado? Não, para ver pela última vez o que fizeram do céu do planeta. Aromatizada há de caminhar tênue, esvoaçante, as mãozinhas abertas hão de empurrar as persianas
Não há nada para ver, apenas o céu, no almoço estarás de pé? codornizes e creme de leite nos pêssegos, e um livro incrível inteiramente novo reformulando a criação interna de fundos
O desinteresse pelo teu pobre verso, a fala mansidão, o desmaio que tu disseste - não estou bem certo, Rute, o casamento me parece uma porca instituição porque - Rute, meu Deus, chamem os médicos, ora eu apenas dissertava sobre a hipotética cadeia das instituições, sobre esse primeiro passo que damos algum dia porque a noiva, a família, desabam suas redes de gosma endurecida sobre as nossas pobres cabeças, lá dentro uma convulsão nos avisa que o Templo há de ser breve e é preciso chegar à frente daqueles que sofrem o engodo da mesma corrida, miríades de noivos, os ternos de giz perfeitamente castos recebendo o hálito das sacristias, todos depois enfileirados tua nossa vossa a do mundo santificada família, vestidos longos e curtos mas todos intocados, ramos de trigo sobre o meu encolhido corpo trêmulo, irado com o meu próprio momento - por que, Tadeu, se é agora que devias pensar no teu verso, no lúdico da palavra, sumo-poesia dulçurosa, e hoje tomo o caminho oposto, Rute e seus raminhos, flor de pêssego tremulando nas mãozinhas, tudo foi como se diz que deveria ser, a passadeira até o altar, sempre as passadeiras até o altar até a cama, atravessando corredores, e no altar da cama a eternidade, primeiras palavras, segundas, depois o silêncio, eterno também, Tadeu esvaziado de si mesmo, mas os vinte anos espigados, o desejo nos distraindo, nossos róseos hálitos ainda, tuas falanginhas percorrendo o meu dorso e me tapando a boca se eu
dizia
Rute, hoje vou te mostrar meu poema, antes do primeiro relatório
Rute, é um poema pequenino, fala a última palavra aqui, e o relatório está pronto
Rute, é sobre o instante, sabe? essa dificuldade de
Claro, Rute, o relatório está perfeito mas é sobre o poema que
Do verso-vida dentro de mim que agora me enche o peito, do meu verso reprimido, de mim Tadeu há tantos anos sonâmbulo, deitando-me e levantando-me para te dar o que tu ainda chamas de delicadeza, delicadeza-prato-de prata sob outros pratos - delicadeza de louça portuguesa, delicadeza-ânforas aladas, delicadeza-moldura cinzeiros caixas, deitando-me e levantando-me para que a casa conserve a mesma atmosfera da de dentro dos cofres, silenciosa e severa e em cada canto uma delicadeza feita do meu sangue, meu verso esse sim delicado escondido na minha velha gaveta, meu desenho de luz e sobriedade, ponta seca, homem-Tadeu de asa curvada sobre o fio da vida, tu mesma desenhada aos vinte, aquarela de cinza e amarelo, os pés descalços, hera colada ao muro atrás da tua cabeça, luz sobre a tua coxa direita entreaberta, porque assim logo depois do amor colocando a fivela, de ouro a tua fivela minha primeira delicadeza, a cada instante viste a minha fivela? abrindo as gavetas segurando o tufo de cabelos sobre a nuca, Tadeu, ajuda, procura a minha fivela, Tadeu te olhava estendido na cama, tu parecias rara, muito, se não falavas. Por que, Rute, minha carne quis a tua? mas não é a carne que pede alguma coisa, é antes a alma, eu te tocava assombrado de mim, mas não é Rute que vai alimentar o embrião-milagre, vai matá-lo, embrião-poesia-bulbo acetinado, por que a carne desejou a tua, se a alma de ti nada sabia? Gostas da aquarela? Eu não te vejo pintor muito menos poeta
Bem, mas com o tempo posso chegar a Te vejo tão perfeito na liderança da empresa Sei, mas gostas ao menos um pouco deste traço? olha o título que coloquei, aqui quase apagado no canto da aquarela ah sim...
"Rute depois do gozo"... engraçado, nunca me vi assim, te lembraste de outra? nunca tive esse cabelo, nem esse rosto comprido, o olho tão redondo, não gosto quando me mostras teus desenhos, teus versos, nunca me vejo neles, é como se tu fosses outro cada vez que me mostras esboços, palavras
Meus livros tão amados, Rute, guardaste-os num lugar tão alto, era preciso uma escada tão comprida
Mas é tão harmoniosa aquela gruta suspensa para os livros, como não enxerga? imagine, até de longe tu podes reconhecer as lombadas, queres ver? Carlos Drummond de Andrade obra Completa, Jorge de Lima, é só pedires a escada Minha alma escurecida
Quê? Minha alma escurecida
Quê? Nada. Que horas são? Dez. Agora já é tarde para pedires a escada.
Te parecia que caminhávamos juntos? Que algumas vezes subíamos? Fico me perguntando como foi possível ter imaginado que era a mesma paisagem o que nós dois víamos, mácula lútea Quê? Mancha amarela Quê? Fovea centralis, poço central, é um estudo sobre os olhos, sobre os nossos olhos, sabe, o de todos. Ahn. Os olhos de todos de matéria igual, mas a carne do que eu vejo, a envoltura, o espesso que os meus olhos atravessam, nada igual, ainda que os teus olhos se mantenham na mesma direção do meu desejo, lâmina de ágata colocada à tua frente, transparência plúmbea, carne da pedra eu digo, e a palavra me distancia no mesmo instante em que repito carne da pedra e não estou mais ali, nem sou, nem vejo, porque o vínculo se quebra quando repito língua intumescida: carne da pedra. Tadeu comungado no mesmo existir duro da pedra e ainda assim Tadeu distanciado, te vejo, nos vemos, mas tudo é absolutamente desigual, e isso repito e repenso porque parece maldito o meu olhar.
Vi com alguém, em alguma tarde, um-só-olhar te vendo, pré-posse augurada, te vi, árvore do paraíso?
Hilda Hilst, Tu não te moves de ti
Editora Globo, p. 21-28