domingo, 2 de setembro de 2012

Inês Pedrosa, Fazes-me falta





Afogo-me nos livros que me deixaste, nos muitos livros que amei por causa de ti. Livros radiantes onde outros tinham escrito os teus sonhos e pesadelos, as tuas inquietações. Sublinho-Lhes as poucas frases que tinham ficado por sublinhar. Mas nenhuma delas me consola, agora apenas literatura, na mortal arrumação da História. Devo-te várias vidas, as vidas múltiplas que vêm nos livros, a minha vida em rede, mapa de atalhos nervosos que através dos livros ganhou sentido. Devo-te a minha juventude recuperada em concertos de rock ou em noites brasileiras no Coliseu. Devo-te o conhecimento da dança que me aqueceu o corpo. Devo-te sobretudo a ilusão do desejo nos olhos das mulheres que atraías para mim - ilusão redentora para os homens da minha geração, criados na obrigação religiosa do amor. Tu, a católica militante, ensinaste-me que não é pecado procurar a pura partilha do desejo - ensinaste-me a ver pureza em tudo ao meu redor. Apareces-me agora em sonhos, chorando, pedindo-me desculpa da tese que me copiaste. Quero responder-te, no sonho, mas a voz não sai. E há muita gente, perco-te. Estamos numa festa enorme, numa montanha verde semeada de ruínas onde surgem todos os nossos amigos e conhecidos. Quero dizer-te só isto: se por uma vez pude melhorar a orquestração da tua melodia, quem tem de te ficar grato sou eu.


Inês Pedrosa, Fazes-me falta