Prólogo em versos
1. Convite
Experimentai a minha cozinha, comilões!
Amanhã haveis de considerá-la melhor.
E depois de amanhã haveis de a louvar.
Se então quiséreis mais
As minhas velhas receitas
Hão de inspirar-me outras novas.
2. A minha felicidade
Depois de sentir-me cansado em procurar
aprendi a encontrar.
Depois de um vento ter-me feito resistência
Navego com todos os ventos.
6. Sabedoria do mundo
Não fiques em terreno plano.
Não subas muito alto.
O mais belo olhar sobre o mundo
Está a meia altura.
9. As minhas rosas
Sim, minha ventura quer fazer felicidade;
É isso que deseja toda a ventura!
Quereis colher as minhas rosas?
Baixai-vos então, escondei-vos,
Entre rochas e espinheiros,
E lambei muitas vezes os dedos!
Pois a minha ventura é malígna!
Pois a minha ventura é pérfida!
Quereis mesmo colher as minhas rosas?
11. Diz o provérbio
Áspero e suave, grosseiro e fino,
Familiar e estranho, impuro e puro,
Lugar de encontro dos loucos e dos sábios.
Tudo isso sou, tudo isso quero ser,
Ao mesmo tempo pomba, serpente e porco.
13. Para os dançarinos
Liso gelo,
Paraíso,
Para quem sabe bem dançar.
18. Almas estreitas
Não suporto as almas estreitas:
Não tem nada de bom, tampouco nada de mau.
21. Contra a vaidade
Não te enchas de ar:
A menor picadela te esvaziaria.
23. Interpretação
Se me interponho, ou dúplice de mim mesmo:
Não posso ser o meu próprio intérprete.
Mas qualquer pessoa que segue seu próprio caminho
Eleva também a minha imagem à luz.
24. Remédio para o pessimismo
Queixas-te que não encontras nada de teu gosto?
São ainda os teus velhos caprichos?
Ouço-te praguejar, gritar e escarrar...
Sinto-me esgotado, meu coração despedaça-se.
Ouve, meu amigo, decide-te um dia
A engolir um sapo bem gordo,
De uma só veze sem olhar.
É remédio soberbo para a tua dispepsia!
25. Oração
Conheço o espírito de muitos homens
E nem sei quem eu mesmo sou!
O meu olhar está demasiado próximo a mim...
Não sou aquilo que vejo e que vi.
Saberia ser-me mais útil
Se estivesse mais longe de mim.
Não, por certo, tão distante como o meu inimigo!
Mas há o meio caminho entre ele e mim!
Sereis capazes de adivinhar o meu pedido?
27. O viajante
"Terminou o atalho! Somente o abismo, silêncio de morte!"
Assim o quiseste! Pois deixaste o atalho!
É o momento! Caminhe! Mantenha o olhar frio e claro!
Estarás perdido se acreditares no perigo.
30. O próximo
Não gosto que o próximo esteja perto:
Que se vá embora para o alto e para longe!
Caso contrário, como haveria de fazer
Para ele se tornar a minha estrela?
33. O solitário
Odeio seguir alguém, como também conduzir.
Obedecer? Não! E governar, nunca!
Quem não se mete medo não consegue metê-lo a ninguém,
Somente aquele que o inspira é capaz de comandar.
Já detesto comandar a mim mesmo!
Gosto, como os animais, das florestas e dos mares,
De me perder durante um tempo,
Permanecer a sonhar num recanto encantador,
E forçar-me a regressar de longe ao meu lar,
Atrair-me a mim próprio... de volta pra mim.
34. Seneca et hoc genus omne
Escrevem, escrevem sem cessar,
São insuportáveis com a sua sabedoria,
"Coisas quiméricas! Larifari."
como se devessem primum scribere, deinde
Philosophari (primeiro escrever, depois filosofar).
35. Gelo
Sim, às vezes como gelo;
É excelente para a digestão.
Se vocês tivessem muito a digerir,
Oh! como iriam gostar do meu gelo!
38. Fala o homem piedoso
Deus nos ama, pois foi ele quem nos criou!
"Foi o homem quem criou Deus!", replicai vós, sutilmente.
E não haveria ele de amar aquilo que criou?
Haveria ele de negar por que nos criou?
Eis que coxeia a mostra o casco fendido do diabo.
40. Sem desejo
Sim, o seu olhar é sem inveja: e é por isso que o honrais?
Preocupa-se pouco com as vossas honras;
Tem o olho de água, olha para o que está longe,
Não nos vê!... Apenas vê os astros e as estrelas!
45. Para sempre
"Venho hoje porque hoje me convém."
Pensa cada um dos que vêm para sempre.
Que lhe importa o que diz o mundo:
"Vindes muito cedo! Vindes muito tarde!"
47. Descida
"Ele cai, ele afunda", troçais vós agora;
A verdade é que ele desce até vós!
Seu excesso de felicidade foi sua desgraça,
Seu excesso de luz acompanha a vossa obscuridade.
54. Ao meu leitor
Bons dentes, bom estômago...
Eis o que te desejo!
Depois de digerires o meu livro,
Hás de entender-te comigo!
62. Ecce Homo
Sim, eu sei de onde venho!
Insatisfeito como o fogo
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se flama,
Em carvão aquilo que abandono:
Sou fogo, com certeza.
63. Moral estelar
Predestinada à tua órbita,
Que te importa, estrela, o breu?
Atravesse, bem-aventurada, através do tempo!
que a miséria te permaneça estranha!
A tua luz pertence ao mais distante dos mundos:
A piedade lhe é um pecado!
Existe apenas uma lei para ti: sê pura!
Friedrich Nietzsche in A Gaia Ciência