domingo, 29 de julho de 2012

As horas nuas


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Entro no quarto escuro, não acendo a luz, quero o escuro.Tropeço no macio, desabo em cima dessa coisa, ah! meu Pai. A mania da Dionísia largar as trouxas de roupa suja no meio do caminho. Está bem, querida, roupa que eu sujei e que você vai lavar, reconheço, você trabalha muito, não existe devoção igual mas agora dá licença? Eu queria ficar assim quietinha com a minha garrafa, Ô! delícia beber sem testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no es­paço, a nave desligada, tudo desligado. Invisível. O que já é uma proeza num planeta habitado por gente visível demais,gente tão solicitante, olha meu cabelo! olha o meu sapato! Olha aqui o meu rabo! E pode acontecer que às vezes a gente não tem vontade de ver rabo nenhum. Licença, Diú, não leve a mal mas vou ficar um pouco por aqui mesmo, bestando no espaço. Seguindo leve nessa ór­bita espiralada até pousar de novo no planeta azul. Acho mansa essa palavra, pousar. Mas tem que ser espaçonave,imagine se aquele avião pousou, está claro que comecei a gritar, Estamos caindo! Por favor, minha senhora, fique calma, pediu a comissária de bordo me agarrando com seus dedinhos de ferro e fazendo aquela cara suave. Tenho ódio de comissária de bordo, todas fingidas, Me larga! Já estava em prantos quando ela me entregou suavíssima nas mãos da amiguinha fotógrafa, clique! clique! Pouso péssimo, pose pior ainda, clique! A atriz Rosa Ambrósio é carregada para fora do avião completamente embriagada. Primeira página. Ou segunda, en­fim, não interessa. Um jornal que só se referia ao meu nome com palavras maravilhosas, ele me amava. O Douglas. Pai desse chefete rancoroso que herdou a empresa. O querido Douglas. Éramos jovens e só os jovens se encaram com o riso secreto que ninguém entende, testemunhas um do outro, é apenas isso, me via nele como num espelho. Posso começar assim as minhas memórias: Quando nos olháva­mos eu via minha beleza refletida nos seus olhos. Bebo devagar. O pano baixa devagar. Desconfio que essa ideia narcisista já andou numa peça, eu sabia o nome da peça, enfim, milhares de pessoas banais já falaram nessa banalidade. Um dia eu fico na praia. Mas fui verdadeira. As­sumi minhas curtas verdades, assumi as mentiras compri­díssimas, assumi fantasias, sonhos — como sonhei e como sonho ainda! Principalmente assumi o meu medo. Tudo somado, um longo plano de evasão fragmentado em fugas miúdas. Diárias. Que foram se multiplicando, não leio mais jornais, desliguei a Tv com suas desgraças em primeiríssima mão, crimes humanos e desumanos, catástrofes e calamidades naturais e provocadas, Ah! um cansaço. Por que ficar sabendo tudo se não posso fazer nada? Posso dar água aos flagelados ressequidos? dar uma toalha de rosto aos inun­dados? Hein?!... As tragédias se enredando sem trégua. Não tenho culpa se tomei horror pelo horror conformado. A mi­séria paciente. Minha mulher, doutor, mais o meu filho com barraco e tudo. Nem o cachorro salvou, sumiu no meio da água, do barro... A Dinamarca envia caixotes de vacinas, o Papa pede a Deus em português. Lá do alto do palanque os políticos filhos da puta exigem providências, Meus irmãos, meus irmãozinhos! E os irmãozinhos continuam morrendo como moscas, Ah! querido Gregório, perdão, mas não su­porto mais tanta miséria, merda! Fui batizada, catequizada, conscientizada e tudo isso para ter a certeza de que não sou Deus e mesmo que fosse. Estou ciente, e daí? Não, não adianta se revoltar, Gregório se revoltou, partiu para o confronto e acabou cassado, dependurado, torturado. Sua linda cabeça pensante levando choque, porrada. Atingido no que tinha de mais precioso. Ferido para sempre.
Tive homens, até que não foram muitos mas tive. Tudo so­mado, ficaram esses dois, Gregório. E Diogo. Sem falar naque­la lembrança tão esgarçada, verdade ou invenção? Miguel. Naquela altura não sei o que podia fazer senão beber,Gregório já tinha ido embora, acho mórbido dizer que ele morreu, ele foi embora e pronto. Diogo, esse foi embora andando. E de mal comigo, é tão antiquado dizer, ficou de mal. Ficou de bem. O cravo brigou com a Rosa, eu cantava na escola. Preciso aproveitar essa ideia nas minhas memórias, acho deslumbrante ver o Bem e o Mal — com letra maiúscula — confundidos numa coisa só, cozinhando no mesmo caldeirão. Quando deviam estar como o inocente par de bibelôs gêmeos na vitrine da mamãe, lembra? Dois gordos menininhos de cabelos encaracolados, cada qual na sua pe­dra, o cestinho de morangos no colo e o sorriso. Enfeitan­do a mesma prateleira, Deus do lado direito e o Diabo por perto com sua sedução sem intenção. Sem malícia. Quando falei com Diogo sobre o que representavam para mim os bi­belôs gêmeos, ele me respondeu aos berros — ouvia jazz, o som altíssimo — que o menininho era um só, dois eram os chifres apontando por entre os caracóis. Diogo, meu amor, fico me perguntando por onde você andará, onde? Jovem e lúcido, uma lucidez assim causticante, eu me embrulhava em tanta coisa e não sabia como sair dos embrulhos, O que eu devo fazer? perguntei tantas vezes.Ele ficava me olhando com aquela sua ironia meio divertida e, ao mesmo tempo, afetuosa. Okey, falei no tempo e vejo agora que com ele eu tinha o tempo diante de mim. O tem­po diante de mim. Dizia que eu era uma burguesa alienada. Poderia ter dito, uma burguesa assumida porque nunca neguei minha condição. Tantos espelhos. Mas só agora me vejo, uma frágil mulher cheia de carências e aparências,dobrando o Cabo da Boa Esperança, já nem sei que cabo é esse, era a mamãe que falava nisso mas deve ter alguma relação com a velhice, Ô! meu Pai, que palavra desprezível. Prefiro falar em madureza. Idade da madureza. Enfim, não tem importância, cumpri minha vocação, fiz o que pude. Ao contrário de Cordélia, pobrezinha. Minha filha, minha filha! eu gritei do alto do penhasco, era uma tragédia grega e meus vestidos despedaçados na ventania. Que­riam que eu descesse do pedestal, pronto, desci, estou aqui no chão. Fecho os olhos e vejo minha filha passar boiando no rio do supérfluo, da espuma, cheguei a pensar que fosse ficar uma tenista, ganhou aí umas taças. E não aconteceu nada, zero. Depois se ligou em astronomia, Gregório e ela falavam horas seguidas sobre os astros, fiquei radiante, a mesma vocação do pai, mecânica celeste! Zero. Mas não é hipócrita como o Diogo que usa belos ternos de tweed, o melhor uísque, o melhor carro e tudo com aquele ar desleixado de quem não dá a menor atenção a essas frivolidades. O Diogo dos blues e dos sapatos italianos. Depois do sexo, me emprenhava pelo ouvido com suas fumaças intelectuais,Oh! la busca de nuestra identidad cultural!
Bebo em homenagem a la busca. Diogo, Diogo. Diante da morte de Gregório ele ficou mais convencional do que eu e chamou correndo um padre progressista, por que aquele padre? Gregório não acreditava em padres e vem um padre de jeans. Encomendou o corpo do meu amado, Amado sim!, com tanta pressa. Deixou a moto lá fora, devia estar com medo que a levassem, uma tristeza. Quem teve a ideia de chamar esse padre? eu perguntei e o Diogo desconver­sou, também não acredita em nada e de repente. Lembro da noite em que ficamos juntos e livres porque Gregório viajou com Cordélia, os feriados numa chácara.Bebemos, fizemos um amor lindo, dormi em estado de feli­cidade para acordar num susto, com Diogo em prantos e me pedindo que lesse os Mandamentos da Igreja. Era madrugada,eu estava no apartamento dele, mas onde ia achar agora um Catecismo com os Mandamentos da Igreja? Tentei dizer isso e ele chorando sem parar, era porre, tudo bem. Mas já vi que a antiga fé ressurge inteira quando ele fica criança de novo. Fácil de entender, a mãezinha levava o menino para os preparatórios da Primeira Comunhão, mas com que for­ça essa coisa da infância às vezes reaparece. Diogo Torqua­to Nave, meu secretário, eu apresentava. E os homens e as mulheres olhavam para ele com respeito porque a beleza exige respeito.
Bombons, gracejos, flores. Foi me conquistando sem pressa, encomendação do corpo e conquista de mulher madura tem que ser devagar, ouviu, padre? Se possível, com certo romantismo, ele sentiu meu constrangimento, esta brutal diferença de idade, eu disse brutal?
Abro os braços, crucificada na roupa suja que espalhei pelo chão. O braço direito é o do Bem mas o outro, o pobre braço gauche. Os bibelôs gêmeos com seus morangos. Ou cerejas? Ah! que lúcida eu fico quando bebo, encho a boca, encho o peito e digo que a confusão vem de longe, Sodoma e Gomorra, hein?! Com o Anjo fugindo espavorido da popu­lação desenfreada, atirando pedras nele. E o Papa-­Anjo lá em San Francisco tentando explicar aos gays. Aids. E daí? A delícia da vida sem delícias, também esta você quer me ti­rar? Eu ficaria com os que atiraram pedras ou com os outros que se ajoelharam? Não sei. Sempre que tenho que escolher me vem esta aflição, detesto escolher.

Lygia Fagundes Telles, As horas nuas