- Sou muito infeliz!
- É pena - observei eu. - Você é difícil de contentar. Tantos amigos, tão poucas preocupações e não consegue dar-se por satisfeita?
- Nelly, queres guardar um segredo meu? - prosseguiu ela, ajoelhando-se junto de mim e erguendo para meu rosto seus cativantes olhos, com um daqueles olhares que afugentam o mau humor, mesmo quando se tem carradas de razão para estar descontente.
- É coisa que valha a pena? - perguntei, menos agastada.
- É pena - observei eu. - Você é difícil de contentar. Tantos amigos, tão poucas preocupações e não consegue dar-se por satisfeita?
- Nelly, queres guardar um segredo meu? - prosseguiu ela, ajoelhando-se junto de mim e erguendo para meu rosto seus cativantes olhos, com um daqueles olhares que afugentam o mau humor, mesmo quando se tem carradas de razão para estar descontente.
- É coisa que valha a pena? - perguntei, menos agastada.
- Sim, pois me atormenta e preciso aliviar-me! Tenho necessidade de saber o que devo fazer. Hoje Edgar Linton pediu-me em casamento e eu lhe dei uma resposta. Agora, antes que eu te diga se respondi sim ou não, responde-me qual deveria ter sido a resposta.
- Na verdade, Srta. Catarina, como posso eu saber?
Certamente, depois do espetáculo que você lhe preparou esta tarde, devo dizer que seria conveniente recusá-lo. E uma vez que, depois daquilo, lhe tenha ele feito o pedido, só sendo duma estupidez incurável ou de uma temeridade louca.
Certamente, depois do espetáculo que você lhe preparou esta tarde, devo dizer que seria conveniente recusá-lo. E uma vez que, depois daquilo, lhe tenha ele feito o pedido, só sendo duma estupidez incurável ou de uma temeridade louca.
- Se falas assim, não direi mais uma palavra - replicou ela, meio agastada, levantando-se. - Aceitei , Nelly. Depressa, dize-me se fiz bem ou mal!
- Você deu o sim? Então para que discutir mais o assunto? Você deu sua palavra e não pode retratar-se.
- Mas dize-me se fiz bem... dize-me! - exclamou ela num tom irritado, esfregando as mãos e franzindo as sobrancelhas.
- É preciso considerar muitas coisas antes de poder responder convenientemente a essa pergunta - respondi eu, de modo sentencioso. - Antes de tudo, gosta do Sr. Edgar?
- Quem não o amaria? Sem dúvida, eu o amo.
(...)
- É preciso considerar muitas coisas antes de poder responder convenientemente a essa pergunta - respondi eu, de modo sentencioso. - Antes de tudo, gosta do Sr. Edgar?
- Quem não o amaria? Sem dúvida, eu o amo.
(...)
- Amo o chão que ele pisa, o ar que respira, tudo quanto toca e tudo quanto diz. Amo todos os seus olhares e todos os seus gestos, amo-o todo inteiro, completamente. Aí está!
- E por quê?
- Ora! Estás brincando e isso é muito mau de tua parte! Para mim não é brinquedo! - disse a moça, fechando a cara e voltando-se para o lado do fogo.
- Estou muito longe de querer brincar, Srta. Catarina. Você gosta do Sr. Edgar por que é bonito, jovem, alegre, rico e também a ama. Esta última razão, aliás, não vale nada. Você gostaria dele sem isso, provavelmente. E, mesmo com isso, você não o amaria se ele não possuísse os outros quatro atrativos.
- Não, decerto. Teria apenas piedade dele... detestá-lo-ia talvez, se fosse feio e rústico.
- Mas há muitos outros rapazes bonitos, ricos, no mundo... Mais bonitos talvez e mais ricos do que ele. Que coisa a impediria de gostar deles?
- Se há outros, estão longe do meu alcance! Nunca encontrei outro igual a Edgar.
- Pode ser que venha a encontrar. E, demais, ele não será sempre bonito e jovem, e pode ser que também não seja rico toda a vida.
- Mas ele o é agora e eu tenho que ver apenas com o presente. Gostaria que falasses com um pouco mais de bom senso.
- Está bem. Isto decide a questão. Se você só tem que preocupar-se com o presente, case com o Sr. Linton.
- Não preciso do teu consentimento para isso... Hei de casar com ele. Mas, afinal, não me disseste se fiz bem ou não.
- Muitíssimo bem, se é que a gente só se casa pelo presente. E agora, vamos saber porque você se diz infeliz. Seu irmão ficará contente, o velho e a velha não farão objeção, penso eu. Você deixará uma casa sem ordem e sem conforto por outra opulenta e respeitável. Gosta de Edgar e ele gosta de você. Tudo parece simples e fácil. Onde está o obstáculo?
- Aqui e aqui! - respondeu Catarina, batendo com uma mão na fronte e a outra no peito. - Por toda a parte onde a alma vive. Na minha alma e no meu coração, estou convencida de que fiz mal.
- E por quê?
- Ora! Estás brincando e isso é muito mau de tua parte! Para mim não é brinquedo! - disse a moça, fechando a cara e voltando-se para o lado do fogo.
- Estou muito longe de querer brincar, Srta. Catarina. Você gosta do Sr. Edgar por que é bonito, jovem, alegre, rico e também a ama. Esta última razão, aliás, não vale nada. Você gostaria dele sem isso, provavelmente. E, mesmo com isso, você não o amaria se ele não possuísse os outros quatro atrativos.
- Não, decerto. Teria apenas piedade dele... detestá-lo-ia talvez, se fosse feio e rústico.
- Mas há muitos outros rapazes bonitos, ricos, no mundo... Mais bonitos talvez e mais ricos do que ele. Que coisa a impediria de gostar deles?
- Se há outros, estão longe do meu alcance! Nunca encontrei outro igual a Edgar.
- Pode ser que venha a encontrar. E, demais, ele não será sempre bonito e jovem, e pode ser que também não seja rico toda a vida.
- Mas ele o é agora e eu tenho que ver apenas com o presente. Gostaria que falasses com um pouco mais de bom senso.
- Está bem. Isto decide a questão. Se você só tem que preocupar-se com o presente, case com o Sr. Linton.
- Não preciso do teu consentimento para isso... Hei de casar com ele. Mas, afinal, não me disseste se fiz bem ou não.
- Muitíssimo bem, se é que a gente só se casa pelo presente. E agora, vamos saber porque você se diz infeliz. Seu irmão ficará contente, o velho e a velha não farão objeção, penso eu. Você deixará uma casa sem ordem e sem conforto por outra opulenta e respeitável. Gosta de Edgar e ele gosta de você. Tudo parece simples e fácil. Onde está o obstáculo?
- Aqui e aqui! - respondeu Catarina, batendo com uma mão na fronte e a outra no peito. - Por toda a parte onde a alma vive. Na minha alma e no meu coração, estou convencida de que fiz mal.
- Isso é muito estranho! Não posso compreender.
- É o meu segredo. Mas, se não zombares de mim, explicarei. Não o posso fazer claramente, mas dar-te-ei uma ideia do que sinto.
- Sentou-se junto de mim novamente. Sua fisionomia tornou-se mais triste e mais grave e as mãos trançadas tremiam.
- Nelly, nunca sonhaste sonhos estranhos? - perguntou ela, de repente, depois de alguns minutos de reflexão.
- Sim, uma vez ou outra.
- Sentou-se junto de mim novamente. Sua fisionomia tornou-se mais triste e mais grave e as mãos trançadas tremiam.
- Nelly, nunca sonhaste sonhos estranhos? - perguntou ela, de repente, depois de alguns minutos de reflexão.
- Sim, uma vez ou outra.
- Eu também. Tenho na minha vida sonhado coisas cuja lembrança não mais me abandonou e que modificaram minhas ideias. Infiltraram-se em mim, como vinho na água, e alteraram a cor de meus pensamentos. Eis um desses sonhos. Vou contar-te... mas toma cuidado para não sorrir de nenhum de seus pormenores.
- Oh! não diga nada, Srta. Catarina! Nossa vida já é bastante triste para que ainda a enchamos de fantasmas e visões para nos perturbar. Vamos, vamos, alegre-se, seja você mesma! Olhe para o pequeno Hareton! Ele não sonha nada de terrível. Como sorri ele docemente no seu sono!
- Sim. Mais docemente ainda seu pai blasfema na solidão! Tu te lembras dele, com certeza, quando era igualzinho a essa coisinha reconchuda, assim tão jovem e tão inocente. No entanto, Nelly, eu te obrigarei a ouvir-me. Não demora muito e eu me sinto incapaz de alegrar-me esta noite.
- Não quero ouvir, não quero ouvir! - repeti vivamente.
Tinha superstições com sonhos naquele tempo, e ainda hoje tenho. Além disso, Catarina estava com um ar que não lhe era habitual e que me fazia temer alguma coisa em que eu veria uma profecia ou preveria uma terrível catástrofe. Mostrou-se embaraçada e não prosseguiu. Aparentando abordar outro assunto, depois de curta pausa, recomeçou.
- Se eu estivesse no céu, Nelly, seria extremamente infeliz.
- Porque você não é digna de ir pra lá. Todos os pecadores seriam infelizes no céu.
- Mas não é por isto. Sonhei uma vez que estava lá.
- Já lhe disse que não quero ouvir seus sonhos, Srta. Catarina! Vou deitar-me - interrompi eu de novo.
Ela pôs-se a rir e obrigou-me a tornar a sentar-me, porque eu fizera menção de deixar minha cadeira.
- Não é nada - exclamou ela. - Ia só dizer que o céu não me pareceu minha verdadeira residência. Dilacerava o coração de tanto chorar no desejo de voltar para a terra e os anjos ficaram tão aborrecidos com isso, que me precipitaram no meio da charneca, no alto de O Morro dos Ventos Uivantes, onde despertei, chorando de alegria. Eis o que te explicará meu segredo, tão bem como o teria feito meu outro sonho. Não me interessa casar com Edgar Linton, como não me interessava estar no céu. E se o sujeito perverso que aqui vive não houvesse degradado tanto Heathcliff, eu não teria pensado nisso. Agora degradaria eu mesma, se casasse com Heathcliff. Assim ele nunca saberá como eu o amo. E isso não porque seja belo, Nelly, mas porque ele é mais eu do que eu mesma. Seja de que forem feitas nossas almas, a dele e a minha são as mesmas e a de Linton é tão diferente como um raio de lua de um clarão, ou como a geada do fogo.
(...)
De que me serviria ter eu vindo ao mundo se me confinasse no que aqui está? Minhas grandes infelicidades neste mundo têm sido as infelicidades de Heathcliff. Aguardei-as e senti-as todas desde sua origem. É ele a minha grande razão de viver. Se tudo perecesse, mas Ele ficasse, eu continuaria a existir. E, se tudo permanecesse e ele fosse aniquilado, o mundo inteiro se tornaria para mim uma coisa totalmente estranha. Eu não seria mais parte desse mundo. Meu amor por Linton é como a folhagem dos bosques: o tempo o transformará, estou bem certa, como o inverno muda as árvores. Meu amor por Heathcliff assemelha-se aos rochedos imotos que jazem por baixo do solo: fonte de alegria pouco aparente mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, sempre, em meu pensamento. Não como um prazer, visto como nem sempre sou um prazer para mim mesma, mas como o meu próprio ser.
- Oh! não diga nada, Srta. Catarina! Nossa vida já é bastante triste para que ainda a enchamos de fantasmas e visões para nos perturbar. Vamos, vamos, alegre-se, seja você mesma! Olhe para o pequeno Hareton! Ele não sonha nada de terrível. Como sorri ele docemente no seu sono!
- Sim. Mais docemente ainda seu pai blasfema na solidão! Tu te lembras dele, com certeza, quando era igualzinho a essa coisinha reconchuda, assim tão jovem e tão inocente. No entanto, Nelly, eu te obrigarei a ouvir-me. Não demora muito e eu me sinto incapaz de alegrar-me esta noite.
- Não quero ouvir, não quero ouvir! - repeti vivamente.
Tinha superstições com sonhos naquele tempo, e ainda hoje tenho. Além disso, Catarina estava com um ar que não lhe era habitual e que me fazia temer alguma coisa em que eu veria uma profecia ou preveria uma terrível catástrofe. Mostrou-se embaraçada e não prosseguiu. Aparentando abordar outro assunto, depois de curta pausa, recomeçou.
- Se eu estivesse no céu, Nelly, seria extremamente infeliz.
- Porque você não é digna de ir pra lá. Todos os pecadores seriam infelizes no céu.
- Mas não é por isto. Sonhei uma vez que estava lá.
- Já lhe disse que não quero ouvir seus sonhos, Srta. Catarina! Vou deitar-me - interrompi eu de novo.
Ela pôs-se a rir e obrigou-me a tornar a sentar-me, porque eu fizera menção de deixar minha cadeira.
- Não é nada - exclamou ela. - Ia só dizer que o céu não me pareceu minha verdadeira residência. Dilacerava o coração de tanto chorar no desejo de voltar para a terra e os anjos ficaram tão aborrecidos com isso, que me precipitaram no meio da charneca, no alto de O Morro dos Ventos Uivantes, onde despertei, chorando de alegria. Eis o que te explicará meu segredo, tão bem como o teria feito meu outro sonho. Não me interessa casar com Edgar Linton, como não me interessava estar no céu. E se o sujeito perverso que aqui vive não houvesse degradado tanto Heathcliff, eu não teria pensado nisso. Agora degradaria eu mesma, se casasse com Heathcliff. Assim ele nunca saberá como eu o amo. E isso não porque seja belo, Nelly, mas porque ele é mais eu do que eu mesma. Seja de que forem feitas nossas almas, a dele e a minha são as mesmas e a de Linton é tão diferente como um raio de lua de um clarão, ou como a geada do fogo.
(...)
De que me serviria ter eu vindo ao mundo se me confinasse no que aqui está? Minhas grandes infelicidades neste mundo têm sido as infelicidades de Heathcliff. Aguardei-as e senti-as todas desde sua origem. É ele a minha grande razão de viver. Se tudo perecesse, mas Ele ficasse, eu continuaria a existir. E, se tudo permanecesse e ele fosse aniquilado, o mundo inteiro se tornaria para mim uma coisa totalmente estranha. Eu não seria mais parte desse mundo. Meu amor por Linton é como a folhagem dos bosques: o tempo o transformará, estou bem certa, como o inverno muda as árvores. Meu amor por Heathcliff assemelha-se aos rochedos imotos que jazem por baixo do solo: fonte de alegria pouco aparente mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, sempre, em meu pensamento. Não como um prazer, visto como nem sempre sou um prazer para mim mesma, mas como o meu próprio ser.
Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes
Os Imortais da Literatura Universal
Tradução: Oscar Mendes
Os Imortais da Literatura Universal
Tradução: Oscar Mendes