quinta-feira, 26 de abril de 2012

Tempo - Morte




I


Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.


II


Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.


Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.


Fecha feridas, é unguento.
Mas pode abrir a tua mágoa
Com a sua fina faca.


Estanca ventura e voz 
Silêncio e desventura.
Imóvel
Garrote
Algoz.


No corpo da tua água passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.




III


Calmoso, longal e rês
Tu não o sentes
Nem vês.


Atravessa lerdo
O adro do teu desgosto.


Na jubilância escorrega
Mas depois passa
Furioso. Passou. Assovio? Seta?


Teus dentes. Teu sapato novo.
O branco da tua casa.
Tua voz adolescente.
Ele carrega memória e concretude.


Vasto atravessa.




IV


Desde que nasci, comigo:
Tempo-Morte.
procurar-te
É estar montado sobre um leopardo
E tentar caçá-lo.


Minha tua garra.
Teu matiz de dentro.
Tua lanhada.
Nossa companhia.
Passo de luz e negro.
Dentes. Arcada.


Dois nítidos
À caça de um Nada.




V


Fatia, tonsura, pinça
Nunca te sei inteiro
Tempo-Morte.
Jamais teu todo, teu pelo
A intrincada cabeça do teu nojo.
Sempre a rasura no texto seco


Ou a gorda eloquência
Sobre a tua figura.


Opaca detenho-me
No vazio do cesto.
Tateio debruçada
Fiapos de palha, sobras
coagulada retorno
Aos arrozais da página.


Ponta dos dedos, pulsão
Até quando teu capuz
Diante de um cego?




Hilda Hilst
do livro: Da morte. Odes Mínimas, p. 71 a 75
pinturas: Alex-Alemany