quinta-feira, 26 de abril de 2012

Carta


Bem quisera escrevê-la 
com palavras sabidas, 
as mesmas, triviais, 
embora estremecessem 
a um toque de paixão. 
Perfurando os obscuros 
canais de argila e sombra, 
ela iria contando 
que vou bem, e amo sempre 
e amo cada vez mais 
a essa minha maneira 
torcida e reticente, 
e espero uma resposta 
mas que não tarde: e peço 
um objeto minúsculo 
só para dar prazer 
e quem pode ofertá-lo; 
diria ela do tempo 
que faz do nosso lado; 
as chuvas já secaram, 
as crianças estudam,
 uma última invenção 
(inda não é perfeita) 
faz ler nos corações, 
mas todos esperamos 
rever-nos bem depressa. 


Muito depressa, não. 
Vai-se tornando o tempo 
estranhamente longo 
à medida que encurta. 
O que ontem disparava, 
desbordado alazão, 
hoje se paralisa 
em esfinge de mármore, 
e até o sono, o sono 
que era grato e era absurdo 
é um dormir acordado 
numa planície grave. 
Rápido é o sono, apenas, 
que se vai, de mandar 
notícias amorosas 
quando não há amor 
a dar ou receber; 
quando só há lembrança, 
ainda menos, pó, 
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo, 
em mim mais do que em tudo, 
e não vale acordar 
quem acaso repousa 
na colina sem árvores. 
Contudo, está é uma carta.


Carlos Drummond de Andrade 
In Claro enigma, 1951 In Poesia Completa, pag. 290 
imagens: Boris Geer