quinta-feira, 22 de março de 2012

Jean-Paul Sartre, A Náusea

TERÇA-FEIRA, 30 DE JANEIRO 


Nada de novo. Trabalhei das nove à uma na Biblioteca. Pus em ordem o capítulo XII e tudo quanto se prende com a estada de Rollebon na Rússia, até à morte de Paulo I. É trabalho acabado: não voltarei a mexer-lhe antes da passagem a limpo. É uma e meia. Estou no Café Mably, a comer uma sanduíche; tudo parece mais ou menos normal. De resto, nos cafés tudo é sempre normal, e especialmente no Café Mably, por causa do gerente, o Sr. Fasquelle, que traz sempre pintada na cara uma expressão acanalhada muito positiva e reconfortante. Daqui a nada é a hora da sua sesta: já tem os olhos vermelhos, mas conserva o andar vivo e decidido. Passeia entre as mesas e aproxima-se, confidencialmente, dos fregueses: «Está tudo à vontade de V. Exa.?» Sorrio de o ver tão vivo: à hora em que o estabelecimento se esvazia, esvazia-se também a cabeça dele. Das duas às quatro o café fica deserto;  então o Sr. Fasquelle dá alguns passos como embrutecido, os criados apagam as luzes, e ele resvala pela inconsciência: este homem, assim que fica sozinho, adormece. Ainda estão na casa uns vinte fregueses, rapazes solteiros, engenheiros modestos, empregados. Almoçam todos rapidamente em pensões de família, a que chamam o seu rancho, e, como têm necessidade dum pouco de luxo, vêm aqui, depois da refeição, tomar um café e jogar ao poker de ases; fazem um certo barulho inconsistente que não me incomoda. Também estes, para existir, precisam de se reunir uns com os outros. Eu então vivo sozinho, absolutamente sozinho. Nunca falo a ninguém; não me dão nada, não dou nada a ninguém. O Autodidata não conta. É verdade que há Françoise, a patroa do Rendez-vous dos Ferroviários. Mas pode dizer-se que falo com ela? Às vezes, depois de jantar, quando vem servir-me uma cerveja, pergunto-lhe: «Esta noite você tem tempo?»  Nunca diz que não, e então sigo-a a um dos quartos grandes do 1.º andar, que ela aluga à hora ou ao dia. Não lhe pago senão o quarto. Ela goza (precisa dum homem por dia, e, além de mim, tem muitos outros) e eu purgo-me assim de  certas melancolias cuja causa conheço perfeitamente. Mas mal trocamos algumas palavras. Para quê? Cada um por si; aos olhos dela, de resto, continuo a ser, antes de mais nada, um freguês do café. Diz-me assim, ao despir o vestido: «Ouça lá, você conhece um aperitivo chamado Bricot? É que houve dois fregueses, esta semana, que pediram. A rapariga não sabia, veio prevenir-me. Eram caixeiros viajantes; foi coisa que beberam em Paris, com certeza. Mas não gosto de comprar sem saber.Se não se importa, não tiro as meias»  Dantes - mesmo muito tempo depois de me ter deixado -, Anny inspirava os meus pensamentos, como se eu quisesse ser-lhe útil. Agora já não penso por ninguém; nem sequer me ocupo a procurar palavras. Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem a palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem, e esqueço-me logo deles. Estes rapazes fazem a minha admiração: contam, ao beber o seu café, histórias nítidas e verossímeis. Se lhes perguntarem o que fizeram ontem, não se perturbam: põem-nos ao corrente em duas palavras. No lugar deles, eu titubearia. É verdade que há muitíssimo tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, deixa de se saber o que seja narrar: a verossimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos. E os acontecimentos também: deixamo-los afundarem-se; vêem-se surgir bruscamente pessoas que se põem a falar e se retiram, mergulhamos em histórias sem pés nem cabeça: que execrável testemunha se seria nestes casos! Mas não se perde nada, em compensação, de quanto é inverosímil, de tudo em quanto, nos cafés, não se poderia acreditarPor exemplo, sábado à tarde, eram umas quatro horas, pelas tábuas que servem de passeio nas obras da estação nova, uma mulherzinha vestida de azul-celeste corria às recuadas, a rir, dizendo adeus com um lenço. Ao mesmo tempo, um negro, de impermeável creme, sapatos amarelos e chapéu verde, dobrava a esquina da rua, a assobiar. A mulher, sempre às recuadas, veio esbarrar com ele, mesmo por baixo duma lanterna que está pendurada na paliçada e se acende de noite. Havia portanto ali, ao mesmo tempo, aquela paliçada que cheira tanto a madeira molhada, aquela lanterna, aquela mulherzinha loura nos braços dum negro, sob um céu de fogo. Se estivessem comigo três  ou quatro pessoas, suponho que teríamos reparado no choque, em todas essas cores desmaiadas, no belo casaco azul que parecia um edredão, no impermeável claro, nos vidros vermelhos da lanterna; teríamos rido da estupefação que se desenhava naqueles dois rostos de criança. É raro um homem só ter vontade de rir: aquele conjunto animou-se para mim dum sentido muito forte e até feroz, mas puro. Depois desmanchou-se; ficou só a lanterna, a paliçada e o céu: mas subsistia ainda uma certa beleza.  Uma hora depois, a lanterna estava acesa, levantara-se vento, o céu escurecera; já nada restava do caso. Nada disto é muito original; nunca recusei estas emoções inofensivas; pelo contrário. Para as sentir, basta ficar-se sozinho um momento, só o preciso para nos desembaraçarmos, na altura oportuna, da verosimilhança. Antes conservava-me muito perto das pessoas, à superfície da solidão, bem decidido, em caso de alarme, a refugiar-me no meio delas: no fundo, até aqui, era um amador. Agora há em toda a parte coisas como aquele copo de cerveja, além, em cima da mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: «Ferrados! Não brinco mais.» Compreendo perfeitamente que fui longe de mais. Acho que não se pode manter a solidão quietinha no seu lugar. Não quer dizer que eu vá olhar para debaixo da cama antes de me deitar, nem que receie ver a porta do quarto abrir-se bruscamente ao meio da noite. Somente, apesar de tudo, estou inquieto: há talvez meia hora que evito olhar para aquele copo de cerveja. Olho para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Mas o copo, não quero vê-lo. E sei muito bem que nenhum destes homens que me cercam, solteiros como eu, pode prestar-me o menor auxílio: é tarde demais, já não posso refugiar-me entre eles. Viriam dar-me palmadinhas nas costas, dir-me-iam: «Então, que é que tem este copo de cerveja? É como todos os outros. Biselado, com uma asa, tem gravado um escudozinho com uma pá, e por cima do escudo está escrito spatenbrüu.» Tudo isto eu sei, mas sei também que há outra coisa. Quase nada. Mas já não posso explicar o que vejo. A ninguém. É isso: vou deslizando suavemente para o fundo da água, direto ao medoEstou sozinho no meio destas vozes alegres e razoáveis. Todos estes fulanos passam o seu tempo a explicar-se uns aos outros, a reconhecer com contentamento que são da mesma opinião. Que importância que ligam, meu Deus, ao fato de pensarem todos juntos as mesmas coisas. Basta ver a cara que fazem quando passa pelo meio deles um desses homens com olhos de paigo, que parece que andam a olhar para dentro, e com quem, de forma nenhuma, se pode chegar a acordo. Quando eu tinha oito anos, e brincava no Luxemburgo, havia um que vinha sentar-se numa guarita situada junto ao gradeamento que margina a Rua Auguste-Cornte. Não dizia nada, mas, de vez em quando, estendia uma perna e olhava para o pé com um ar de terror. Esse pé tinha calçada uma bota, mas o outro estava enfiado numa pantufa. O guarda disse ao meu tio que esse homem era um antigo censor. Tinham-no reformado, porque viera ler as notas do período, nas aulas, em traje de acadêmico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que estava sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo os braços para ele, de longe: por um pouco, Robert não desmaiou. Não era o ar miserável do tipo que nos metia medo, nem o tumor que tinha no pescoço, e que constantemente esfregava na beira do colarinho: é que sentíamos que ele gerava na cabeça pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E a nós aterrorizava-nos que se pudessem alimentar pensamentos de lagosta quanto à guarita, quanto aos nossos arcos, quanto aos tufos de arbustos. É isso então o que me espera? Aborreço-me, pela primeira vez, de estar sozinho. Gostava de falar a alguém do que me está a acontecer, antes que seja tarde, antes de meter medo aos rapazes pequenos. Gostava que Annv. estivesse aqui. É curioso: acabo de escrever dez páginas, e não disse a verdade - não disse, pelo menos, a verdade toda. Se escrevi, por baixo da data, «Nada de novo», foi com a consciência a protestar: com efeito, uma pequena história, que não é vergonhosa nem extraordinária, recusava-se a sair. «nada de novo.» Admiro-me de como se pode mentir com a verdade na mão. Evidentemente, não se produziu nada de novo. se assim quisermos: esta manhã, às oito e um quarto, ao sair do Hotel Printania para ir à Biblioteca, quis apanhar um papel que estava no chão, e não pude. É tudo; nem isso constitui um acontecimento. Sim, mas, para dizer a verdade toda, fiquei profundamente impressionado: pensei que deixara de ser livre. Na Biblioteca procurei libertar-me dessa ideia, e não consegui. Quis fugir-lhe indo para o Café Mably. Esperava que ela se dissipasse com as luzes. Mas a ideia ficou onde estava, em mim, pesada e dolorosa. Foi ela que me ditou as páginas precedentes. Por que é que não falei dela? Deve ter sido por orgulho, e também um pouco por inépcia. Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo; por isso não recordo bem a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é importante. Mas, agora, acabou-se: reli o que tinha escrito no Café Mably, e tive vergonha: não quero segredos, nem estados de alma, nem inefáveis; não sou virgem, nem padre, para brincar à vida interior. Não há grande coisa a dizer: não pude apanhar o papel, mais nada. Gosto   imenso   de   apanhar   do   chão   castanhas, trapos já velhos, principalmente papéis. Sinto prazer em pegar neles, em fechá-los na mão;  pouco falta para os levar à boca, como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujos de trampa. No Verão ou no começo do Outono encontram-se nos jardins pedaços de jornal que o sol crestou, secos e quebradiços como folhas caídas, tão amarelos que os diriam passados por ácido pieriço.  Outras páginas,  no  Inverno,  aparecem pisadas, trituradas, maculadas, voltam à teiia. Outras novinhas ou, às vezes, lustrosas, muito brancas, palpitantes, alentam no chão como cisnes, mas já a terra por baixo a vai atolando. Torcem-se, arrancam-se da Lama, mas é para se irem estatelar um pouco mais longe, definitivamente. Tudo isso dá prazer apanhar. Às vezes limito-me a talear essas folhas, olhando-as de muito perto, outras vezes rasgo-as para lhes ouvir o largo crepitar, ou então, se- e«tão muito úmidas, deito-lhes fogo, o que tem a sua dificuldade; depois limpo a palma das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco duma árvore. Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as bolas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado duma poça. Julguei que o oficial. com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: dum passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancada certamente dum caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de bolhas e de tumefações, como uma mão queimada. O traço vermelho da  margem desbotara, tornando-se uma umidade cor-de-rosa; em alguns sítios a tinta tinha escorrido. A parte de baixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas .. Não pude. Fiquei curvado um segundo; ainda li: «Ditado - O Mocho Branco»; depois endireitei-me, de braços caídos. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero. Os objetos não deviam impressionar-nos o tato, visto que não vivem. Servimo-nos deles, pomo-los no seu lugar, vivemos no meio deles: são úteis, nada mais. E a mim, os objetos tocam-me; é insuportávelTenho medo de entrar em contato com eles, como se fossem animais vivos. Agora percebo; lembro-me melhor do que senti, no outro dia à beira-mar, quando tinha a pedra na mão. Era uma espécie de enjoo adocicado. Que desagradável que era! E a sensação vinha da pedra, tenho a certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim, é isso. Era exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos. 

Jean-Paul Sartre, A Náusea