quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Thomas Mann, A morte em Veneza

Estátua e espelho! Seus olhos envolveram a nobre figura à beira do azul e, em êxtase entusiasta, ele acreditou, com esse olhar, compreender o belo em si, a forma como pensamento divino, a única e pura perfeição que vive no espírito e da qual uma imagem e alegoria humana aqui estava erguida, leve e graciosa, para adoração. Isto era a embriaguez; e, sem hesitação, avaro mesmo, o artista envelhecido recebeu-a calorosamente. Seu cérebro girava, sua cultura entrou em efervescência, sua mente levantou pensamentos transmitidos desde sua juventude e que até então não tinham sido avivados pelo próprio fogo. Não estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas sensuais? Dizem que ele atordoa e encanta o intelecto e a memória de tal maneira, que a alma, de alegria, esquece completamente sua verdadeira condição e, com espantada admiração, fica presa no mais belo dos objetos banhados pelo sol: e só com o auxílio de um corpo ela consegue elevar-se para uma contemplação ainda mais alta. Cupido, deveras, imitou os matemáticos, os quais apresentam às crianças incapazes figuras concretas de formas puras. Assim também o deus, para nos fazer visível o espiritual, gostava de servir-se do corpo e das cores da juventude humana, que, como instrumento de lembrança, enfeitava com todo o reflexo da beleza, e, na contemplação dela, nós certamente nos incendiávamos em dor e esperança.
Assim pensava o entusiasmado; assim era capaz de sentir. E, do êxtase do mar e do brilho do sol, formou-se no seu íntimo um lindo quadro. Era o velho plátano perto dos muros de Atenas - era aquele sagrado sombreado lugar, cheio do perfume das flores do agnocasto, enfeitado por ex-votos e dádivas piedosas em homenagem às ninfas e ao Aquelôo. Completamente límpido, o rio caía aos pés da árvore de hastes largas, sobre calhaus lisos; as cigarras cantavam. Mas, sobre o gramado, que tinha uma inclinação ligeira de modo a poder a cabeça ficar mais alta ao deitar, estavam estendidas duas pessoas, abrigadas do calor do dia: uma idosa e uma jovem, uma feia e uma bela, o sábio ao lado do gentil. E, com cortesia e angariantes gracejos espirituais, Sócrates esclarecia Fédon sobre o anseio e a virtude. Falava-lhe sobre o susto ardente que o sensível sofre quando seus olhos vêem uma alegoria da beleza eterna; falava dos desejos do ignóbil e mau que não pode pensar na beleza quando vê sua imagem, e não é capaz de veneração; falava do medo sagrado que domina o nobre, quando lhe aparece um rosto divino, um corpo perfeito, como então treme e fica fora de si e quase não se atreve a olhar e adora aquele que tem a beleza. Ofertar-lhe-ia mesmo sacrifícios, como a uma estátua, se não temesse parecer louco aos homens. Pois a beleza, Meu Fédon, só ela é gentil e visível ao mesmo tempo: ela é, preste bem atenção! a única forma do espiritual que podemos receber sensualmente, suportar sensualmente. Ou o que seria de nós se o divino, a razão, a virtude a verdade se quisessem apresentar-se-nos sensualmente! Não pereceríamos e queimaríamos de amor como Semele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível ao espírito - só um caminho, um meio somente, pequeno Fédon... E depois expressou o mais sutil, o astuto cortejador: pois o amante é mais divino que o amado, porque naquele está o deus, e no outro não - pensamento tão carinhoso e irônico que talvez jamais tenha sido pensado e do qual nasce toda a travessura e a mais secreta voluptuosidade do anseio.

A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento. Um pensamento palpitante como este, um sentimento tão exato, pertencia e obedecia ao solitário, naquela ocasião: isto é, que a natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza. Repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado pra isto. Mas neste ponto da crise a exaltação do atordoado era dirigida à produção. Quase indiferente o motivo. Uma pergunta, uma incitação sobre um certo grande e ardente problema da cultura e do gosto, deixando-se sentir como definição, tinha sido projetada ao mundo espiritual e chegara até o viajante. O assunto lhe era familiar, lhe era experiência; seu desejo de deixá-lo acender-se na luz de sua palavra tornou-se irresistível. E, na verdade, seu anseio era trabalhar na presença de Tadzio, e, escrevendo, adotar a figura do menino como modelo, deixar seu estilo seguir as linhas deste corpo que lhe parecia divino, levar sua beleza para o espiritual, como outrora a águia carregara o pastor troiano para o éter. Nunca sentira mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra, como nas horas perigosas e deliciosas, durante as quais, sentado em frente à rude mesa sob o toldo, na presença de seus ídolos e a música de sua voz nos ouvidos, formava sua pequena dissertação, de acordo com a beleza de Tadzio - aquela página e meia de escolhida prosa, cuja integridade, nobreza e ondulante tensão de sentimento dentro em pouco exaltaria a admiração de muitos. Por certo é bom que o mundo só conheça as belas obras sem conhecer suas origens e condições de formação, pois o conhecimento das fontes que serviram de inspiração ao artista muitas vezes o desconcertaria, desalentaria e assim anularia os efeitos do que é excelente. Estranhas horas! Estranha fadiga enervante! Estranha comunicação criadora do espírito com um corpo! Quando Aschenbach guardou seu trabalho e deixou a praia, sentiu-se esgotado, desconcertado mesmo, como se a sua consciência lhe fizesse queixas depois de uma digressão.
Foi na manhã seguinte que ele, no intuito de deixar o hotel, viu da escadaria que Tadzio já se encaminhava para o mar - sozinho - aproximando-se justamente do cercado. O desejo, o simples pensamento de aproveitar a oportunidade para travar relações leves e alegres com aquele que, sem o saber, lhe proporcionava tanta elevação e emoção; de dirigir-lhe a palavra, de alegrar-se com sua resposta, era forte e se impunha. O belo ia devagar, era alcançável, e Aschenbach apressou-se. Aproxima-se dele no caminho de madeira atrás das cabinas, quer colocar-lhe a mão sobre os ombros, e uma palavra qualquer, uma frase em frances, pairava nos seus lábios: então sente que seu coração, talvez por causa do andar acelerado, bate como um martelo, que, tão sem fôlego, só conseguiria falar comprimido e tremido; ele hesita, tenta dominar-se, ele teme, repentinamente, já ter andado por tempo demais atrás do belo, teme o despertar de sua atenção, seu olhar indagador; toma mais um impulso, falha, renuncia e passa de cabeça abaixada.
"Tarde demais!", pensou neste momento. "Tarde demais!" Era, porém, tarde demais? Esse passo que não dera podia ser para o bem; o fácil e o alegre podia levar à sanável desilusão. A verdade era que o idoso não deseja a desilusão, porque a embriaguez lhe era cara demais. Quem decifra o caráter e o cunho do artista! quem entende a profunda fusão instintiva de disciplina e devassidão na qual se baseia! Pois não conseguir desejar a sanável desilusão é devassidão. Aschenbach não estava mais disposto para a autocrítica; o gosto, a condição espiritual de seus anos, a dignidade própria, a maturidade e a tardia simplicidade não o inclinavam a analisar os motivos e a decidir se fora por consciência, ou por desleixo e fraqueza, que não realizara suas intenções. Estava desconcertado, temia que alguém, mesmo que fosse só o guarda da praia, tivesse observado sua corrida, sua derrota; temia a ridicularidade. De resto, gracejava consigo mesmo sobre seu medo cômico-sagrado. "Consternado", pensou, "consternado como um galo temeroso que deixa pender as asas durante a luta. Isto na verdade é o deus que, na contemplação do amável, nos quebra a coragem desta maneira e comprime o nosso orgulho tão completamente contra o chão..." Brincou e entusiasmou-se; era altivo demais para temer um sentimento.
Já não vigiava a expiração das férias que se concedera; a ideia de regressar para a pátria nem sequer o tocava. Tinha providenciado abundante reserva em dinheiro. Sua única preocupação era a possível partida da família polonesa; porém, por intermédio de terceiros, por informações colhidas por acaso no barbeiro do hotel, soubera que havia chegado pouco antes dele. O sol queimava-lhe o rosto e as mãos, o ar salino fortalecia-lhe o sentimento; e, assim como antes aplicava de imediato numa obra todo o descanso que lhe proporcionava o sono, a alimentação ou a natureza, assim deixou agora tudo o que o sol, a ociosidade e o ar marinho lhe davam em cotidiano fortalecimento consumir-se magnânimo e desgovernado, em êxtase e sentimento.
Seu sono era prófugo; os deliciosos dias uniformes eram interrompidos por noites curtas, cheias de feliz desassossego. Na verdade, recolhia-se cedo,  às 9 horas, quando Tadzio desaparecia da cena, o dia lhe parecia findo. Mas, ao primeiro clarão do dia, era acordado por um delicado e penetrante susto: seu coração lembrava-se de sua aventura, não suportava ficar deitado por mais tempo, levantava-se, envolvido num agasalho leve, sentava-se em frente à janela aberta para espera o nascimento do sol. O maravilhoso acontecimento enchia de veneração sua alma enlevada pelo sono. Ainda o céu, a terra e o mar estavam envolvidos na fantástica, vítrea palidez da madrugada; ainda pairava uma estrela apagada no espaço. Mas vinha um sopro, uma notícia alada de residências inatingíveis, de que Eros se erguia do lado de seu esposo, e então aparecia aquele primeiro doce enrubescer da faixa mais distante do céu e do mar, anunciando o sensualizar da criação. A deusa se aproximava, a raptora de adolescentes, que arrebatara Ceix e Céfalo e, a despeito da inveja de todos os olímpicos, gozava o amor do Belo Órion. Um espalhar de rosas começou à beira do mundo, um indizivelmente belo brilhar e florir, nuvens infantis, transfiguradas, translúcidas, oscilavam como servis gênios no perfume róseo, azulado. Purpura caiu sobre o mar, que parecia flutuá-la em ondas para a frente; lanças douradas apontavam de baixo para as alturas do céu; o brilho tornou-se brasa; silenciosamente, com supremo poder divino, brasa, ardor e labaredas chamejantes rolavam para cima e com cascos arrebatadores os cavalos sacros do irmão subiam pelo universo. Iluminado pelo esplendor do deus, o solitário acordado fecha os olhos e deixava que suas pálpebras fossem beijadas pela glória. Velhos sentimentos, antigos deliciosos impulsos do coração que, no severo trabalho de sua vida, haviam morrido - reconheceu-os com um sorriso desconcertado e admirado. Pensava, sonhava; vagarosamente seus lábios formaram um nome, e, ainda sorrindo, com o rosto erguido, as mãos entrelaçadas no colo, adormeceu de novo, sentado na cadeira.
Mas o dia que começara tão ardente e festivo foi em seu todo estranhamente elevado e misticamente transformado. De onde vinha e nascia esse hálito que, de repente, tão suave e significativo, como sob insinuações superiores, lhe envolvia as têmporas e as orelhas? Cirros brancos em bandos estavam espalhados no céu como rebanhos no pasto dos deuses. Um vento mais forte ergueu-se e os cavalos de Poseidon corriam, corcoveando; talvez também touros, pertencentes do deus de cachos azulados, os quais vinham correndo com bramidos, abaixando os chifres. Entre o amontoado dos rochedos da praia mais distante, porém, as ondas pulavam para cima, como cabras saltando. Um mundo de sagrado desfiguramento, cheio de vida assustadora, envolveu o fascinado e seu coração sonhou delicadas fábulas. Várias vezes, quando o sol descia atrás de Veneza, sentava num banco no parque para observar Tadzio, que, vestido de branco com um cinto colorido, se divertia na praça de saibro alisado com o jogo de bola e era a Hiacinto que julgava ver, o qual morrera porque dois deuses o amavam. Sentia mesmo a inveja dolorida de Zéfiro pelo rival, que se esqueceu do oráculo, do arco e da cítara, para sempre brincar com o belo; viu o disco, dirigido pelo bárbaro ciúme, atingir a encantadora cabeça; recebeu, também ele empalidecendo, o corpo desfalecido; e a flor nascida do sangue doce trazia a inscrição de sua infinita queixa...
Nada é mais estranho, mais melindroso que a relação de pessoas que só se conhecem de vista - que diariamente, em cada hora mesmo, se encontram, se observam; são obrigadas a manter a aparência de indiferente estranheza, sem cumprimento, sem palavra, pela ética ou capricho pessoal. Entre eles há inquietação e curiosidade sobreexcitada, a histeria de uma insatisfeita e artificialmente oprimida necessidade de conhecimento e intercâmbio, e principalmente também uma espécie de respeitoso interesse. Pois o homem ama e respeita o homem enquanto não consegue julgá-lo; e o anseio é o produto de um conhecimento falho.
Uma relação e um conhecimento qualquer tinham que, necessariamente, formar-se entre Aschenbach e o jovem Tadzio, e, com penetrante alegria, o mais idoso pode verificar que interesse e atenção não ficaram completamente sem ser correspondidos. Por exemplo, que fazia o belo nunca mais vir pelo caminho de madeira atrás das cabinas, quando aparecia de manhã na praia, mas somente pelo caminho da frente, pela areia, passando o local de Aschenbach desnecessariamente perto, quase tocando em sua mesa, sua cadeira, dirigindo-se em passos lentos para a cabina dos seus? Afetava assim a atração, a fascinação de um sentimento superior o seu delicado e distraído objeto? Aschenbach esperava diariamente a chegada de Tadzio, e, de quando em quando, fingia estar ocupado quando isto se dava, deixando o belo passar, aparentemente despercebido. As vezes levantava os olhos e os seus se encontravam com os dele. Ambos ficavam profundamente sérios quando isto acontecia. Na culta e grave expressão do idoso nada traía uma emoção íntima, mas nos olhos de Tadzio havia um investigar, um perguntar pensativo, seu andar ficava hesitante, olhava para o chão, erguia deliciosamente de novo os olhos, e, quando passava, algo no seu porte parecia expressar que só a educação o impedia de se voltar.
Uma vez, porém numa noite, foi diferente. Os irmãos poloneses e a governanta faltaram durante a refeição principal na sala grande - Aschenbach notara-o com preocupação. Depois do jantar, muito inquieto sobre o paradeiro deles, andava em traje de noite e o chapéu de palha, em frente do hotel, aos pés do terraço, quando, repentinamente, viu as irmãs com aparência de freiras, a preceptora e, quatro passos atrás delas, Tadzio aparecerem sob a luz da lâmpada de arco. Aparentemente vinham da ponte de barcas, depois de terem jantado na cidade, por uma razão qualquer. Sobre a água devia estar fresco; Tadzio usava um casaco à marinheira azul-escuro com botões dourados e na cabeça um boné combinando. Sol e ar marinho não o queimavam, sua pele continuava de um amarelo marmóreo, como no princípio; porém, hoje parecia mais pálido que de costume, fosse por causa da noite fresca ou do empalidecente luar das lâmpadas. Suas sobrancelhas simétricas destacavam-se mais fortes, seus olhos pareciam mais escuros. Estava indizivelmente belo e Aschenbach sentiu, com pena, como já por muitas vezes, que a palavra só consegue louvar a beleza sensual, porém não reproduzi-la.
Não notou a querida imagem; aparecera inesperadamente, não tivera tempo de se acalmar e trazer dignidade para sua expressão. Alegria, surpresa, admiração deviam transparecer abertamente, quando seu olhar encontrou o do desaparecido - e neste segundo aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu para ele, falando, íntimo, gracioso e sem rodeios, com lábios que no sorriso se abriam lentamente. Era o sorriso de Narciso que se debruça sobre o espelho de água, aquele sorriso profundo, encantador, prolongado, com o qual estende os braços para o reflexo da própria beleza - um sorriso ligeiramente desfigurado, desfigurado pela inutilidade de seu desejo, de beijar os lindos lábios de sua sombra, galante, curioso e ligeiramente atormentado, seduzido e sedutor.
Aquele que recebera este sorriso fugiu com ele como um presente fatídico. Estava tão abalado que se viu obrigado a evitar a luz do terraço e do jardim da frente e procurou, apressado, a escuridão do parque nos fundos. Admoestações estranhamente revoltadas e carinhosas desprendiam-se dele: "Não deve sorrir assim! Ouça, não se deve sorrir assim pra ninguém!" Atirou-se sobre um banco, respirou indignado o perfume noturno das plantas. E, inclinado para trás, de braços pendentes, dominado e sentindo-se percorrido por arrepios, murmurou a eterna fórmula do anseio - aqui impossível, absurdo, abjeto, ridículo e, no entanto, sagrado, digno mesmo, ainda aqui: "Eu te amo!"


Thomas Mann, A morte em Veneza