sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cinco Elegias: É tempo de parar as confidências

 
I

Teus esgares, de repente,
Teus gritos
Quem os entende?
E todos os teus ruídos
Teus vários sons e mugidos
Quem os entende?

E foi assim que o poeta
Assombrado com as ausências
Resolveu:
Fazer parte da paisagem
E repensar convivências.
Em vão tenho procurado
A glória das descobertas.
Em vão a língua se move
Trazendo à tona o segredo.
Em vão nos locomovemos.
Para onde pés e braços?

Distantes os hemisférios
E as relíquias da memória.
Tão distante a minha infância
Pudor, beleza, invenção
E o ouro da minha trança
Não teve sequer canção.
Cresci tão inutilmente
Quando devia ficar
Debaixo das laranjeiras
À sombra dos laranjais.
Cresci, elegi palavras
Qualifiquei os afetos.
Vestígios de madrugada
Diante dos olhos abertos.
Claridades, esperanças,
Em tudo a cor e a vontade
De ver além da distância.

Depois as visões, as crenças
Algumas falas a sós
Premeditadas vivências
Graves temores na voz.
Era ou não
Abrasada adolescência?


II

O vocábulo se desprende
Em longas espirais de aço.
Ajustemos a mordaça
Porque no tempo presente
Além da carícia, é a farsa
Aquela que se insinua.
Faço parte da paisagem.
E há muito para se ver
Aquém e além da colina.
Há pouco para dizer,
Quando a alma que é menina
Vê de um lado o que imagina,
Do outro o que todos vêem:
O sol, a verdura fina
Algumas reses paradas
No molhado da campina.
Ventura a minha, a de ser
Poeta e podendo dizer
Calar o que mais me afeta.
Ventura ter o meu mundo

E resguardá-lo das cinzas
Das invasões e dos desgostos.
Ah, poderiam ter sido
Encantados e secretos

Aqueles brandos colóquios
Que outrora se pareciam
Às doces falas do afeto.


III

As coisas que nos circundam
(Na aparência desiguais)
Conservam em suas essências
Ai, aquela mesma e triste
Parecença.
Difícil é escolher
Entre viver e morrer.
Difícil é o escutar-se
E ao mesmo tempo escutar
Rigores que vêm da terra
Lirismos que vêm do mar.
Auroras imprevisíveis
Entre Platão e Plutão.
Entre a verdade e os infernos
Dez passos de claridade
Dez passos de escuridão.
Consinto que me surpreendas
Dizendo palavras densas.
O não dizer é o que inflama
E a boca e o movimento
É que torna o pensamento
Lume
Cardume
Chama.
Não tenho tido descanso
Do falarar de quem ama.
Amor é calar a trama.
É inventar. É magia.
As palavras engenhosas
E os teus dizeres do dia
À noite não tem sentido

Quando arquiteto a elegia.
E sendo assim continuo
Meu roteiro de silêncio
Minha vida de poesia.

IV

Não te espantes da vontade
Do poeta
Em transmudar-se:
Quero e queria ser boi
Ser flor
Ser paisagem.
Sentir a brisa da tarde
Olhar os céus, ver as tardes

Meus irmãos, bezerros, hastes,
Amar o verde, pascer
Nascer junto à terra
(À noite amar as estrelas)
Ter olhos claros, ausentes,
Sem o saber ser contente
De ser boi, ser flor, paisagem.
Não te espantes. E reserva
Teu sorriso para os homens
Que a todo custo hão de ser
Oradores, eruditos,
Doutos doutores
Fronte e cerne endurecido.
Quero e queria ser boi
Antes de querer ser flor.
E na planície, no monte
Movendo com igual compasso
A carcaça e os leves cascos
(Olhando além do horizonte)
Um pensamento eu teria:
Mais vale a mente vazia.
E sendo boi, sou ternura.

Aunque pueda parecer
Que del poeta
Es locura



V

É tempo para dizer
Se prefiro o teu amor
Àqueles, aos doces ares
Da minha campina em flor.
Tu que projetas e inventas
Estruturas ascendentes
E sonhas com superfícies
Além deste continente,
Tu que conheces melhor
As coisas do querer bem
(Porque até agora te quis
E antes não quis ninguém)
Tu, bem o sei, me pressentes.
E mais ainda, me vês
Tão perto do querer ser
Deste amor sempre contente.
Ah, descantares, lamentos,
As leves coisas do tempo
Têm seu tempo e seus altares.
É tempo para escolher
O anoitecer nas planuras
E o contemplar luaceiros
E é tempo para calar
A estória dos meus roteiros.
Paisagem, tu me alimentas
De verde, de sol, de amor.
E numa tarde tranquila,
Nos longes, seja onde for
Lembra-te um pouco de mim:
Que eu morra olhando as alturas.
E que a chuva no meu rosto
Faça crescer tenro caule
De flor. (Ainda que obscura)


Hilda Hilst
pinturas: willi kissmer