Meu verdadeiro nome é bastante conhecido nos arquivos ou registros das prisões de Newgate e Old Bailey, e certos processos de maior ou menor importância relativos à minha conduta pessoal encontram-se ainda pendentes. Por isso não se deve esperar a inclusão de meu nome ou de especificações sobre a minha família, nesta obra. Quem sabe se, após a minha morte, tudo venha a ser mais bem esclarecido. Mas isso não seria conveniente no momento, nem mesmo se uma anistia geral fosse promulgada, sem fazer exceção ou reserva de pessoas ou crimes.
Basta dizer que alguns dos meus piores camaradas, que já não tem a possibilidade de me fazer mal, pois deixaram este mundo pelo caminho da escada e da corda, como eu mesma frequentemente acreditei que me ocorreria, conheciam-me por Moll Flanders. Seja-me, pois, permitido falar de mim sob esse nome, até que ouse reconhecer quem fui eu e quem sou.
Disseram-me que numa nação vizinha, na França ou noutro lugar qualquer, não sei bem, existe uma ordem do rei a respeito do condenado à morte, às galeras ou à deportação. Caso o criminoso deixe filhos, geralmente sem recursos, porque ele é pobre ou teve seus bens confiscados, essas crianças são imediatamente postas sob a proteção do governo, numa instituição de caridade denominada “orfanato”, onde são educadas, vestidas, alimentadas e instruídas. E, quando chega a época de saírem, são empregadas como aprendizes ou domésticas, estando então aptas a ganhar a vida honestamente, através de suas habilidades.
Se fosse esse o costume de nosso país, eu não teria sido uma moça desolada, abandonada sem amigos, sem roupas, sem nada, sem ninguém que me auxiliasse, como aconteceu, razão por que eu fui não somente exposta a grandes desgraças, antes mesmo de poder compreender minha situação ou de saber como remediá-la, mas também levada a uma existência escandalosa em si própria e cujo curso normal leva, de uma só vez, a alma e o corpo a uma rápida destruição.
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Este roubo foi o maior e o pior que fiz; com efeito, por mais que eu tivesse ficado insensível em outras circunstâncias, como já disse, à margem de qualquer consideração, fiquei, contudo, impressionada até a alma, olhando para este tesouro, em pensar na pobre senhora inconsolável, que havia perdido tanta coisa a mais no incêndio e que devia acreditar, seguramente, que eu tinha conseguido salvar sua prataria e suas joias. Como ficaria aflita e surpresa ao descobrir que tinha sido enganada, que a pessoa que havia levado seus filhos e seus valores não fora enviada, como acreditara, pela senhora da rua vizinha, mas que as crianças tinham sido conduzidas para lá sem conhecimento desta última.
Confesso que a desumanidade de meu ato me tocou fortemente. Fiquei deprimida, com os olhos cheios de lágrimas. Porém, com toda consciência do que ele tinha de cruel e desumano, nunca tive coração para restituir nada. Este fato apagou-se e esqueci rapidamente as circunstâncias que haviam acompanhado aquele roubo.
Isto não foi tudo. Porquanto, ainda que com este golpe eu me tenha tornado consideravelmente mais rica, a resolução que tinha tomado de parar com esta horrível atividade, tão logo eu tivesse um pouco mais, não me voltou ao espírito. Eu queria possuir ainda mais. A avareza se casou com o sucesso para não mais permitir mudar de vida, ainda que, sem isso, eu não pudesse esperar segurança nem tranqüilidade no usufruto do que havia tão perniciosamente ganho. “Mais, eu preciso de mais” era sempre o refrão.
Por fim, cedendo à pressão do meu crime, rejeitei todo remorso, todo arrependimento, e as reflexões sobre o assunto não chegaram a nada mais que isso: eu poderia, talvez, fazer um roubo maior, que satisfizesse meus desejos. Mas, ainda que eu obtivesse sucesso com este furto, cada novo sucesso me encorajava a tentar outro, e encorajava-me de tal maneira a prosseguir no ofício que o pensamento de abandoná-lo não mais me agradava.
Nessa situação, extasiada pelo sucesso e resolvida a continuar, caí numa armadilha. Estava destinada a receber a suprema recompensa por este gênero de vida. Isto não foi, porém, tão rápido, pois, nesta rota em direção à perdição, participei de diversas aventuras felizes.
Daniel Defoe, Moll Flanders