domingo, 15 de janeiro de 2012

André Malraux, A condição Humana

“Flamenga”, pensou ele… Interrompeu-a:
- Pode-se arranjar ópio não muito caro. Eu pago este a dois dólares e setenta e cinco.
- Também és do norte?
- Ele deu-lhe uma caixa sem responder. Ela ficou grata por encontrar um compatriota e por aquela oferta.
- Ainda é muito caro para mim... Mas este não terá custado caro. Hei de comer dele esta noite.
- Não gosta de fumar?
- Julgas então que tenho um cachimbo? Mas que idéia fazes tu das minhas posses?
- Sorriu com amargura, contente ainda, apesar de tudo. Mas a desconfiança costumeira surgiu outra vez:
- Por que é que tu mo dás?
- Deixa lá... Dá-me prazer. Já fui do “meio”...
- Na verdade, ele não tinha o ar de um freguês. Mas não era certamente já “do meio” há muito tempo. (ele tinha às vezes necessidade de inventar para si biografias completas, mas raramente quando a sexualidade estava em jogo.) Ela chegou-se para ele sobre os coxins.
- Só quero que sejas amável comigo: será a última vez em que me deito com uma mulher...
- Por quê?
- Ela era de compreensão lenta, mas não estúpida. Depois de ter respondido, compreendeu.
- Tu queres matar-te?
Não era o primeiro. Tomou entre as suas mãos a de Clappique, pousada sobre a mesa, e beijou-a, num gesto desajeitado e quase maternal.
- É uma pena... queres ir lá para cima?
Tinha ouvido dizer que esse desejo vinha por vezes aos homens, antes da morte. Mas não ousava ser a primeira a levantar-se: julgaria tornar-lhe assim mais próximo o suicídio. Conservava a mão dele entre as suas. Deitado para cima dos coxins, com as pernas cruzadas e os braços colados ao corpo como um inseto friorento, olhava para ela, de nariz estendido, com um olhar muito distante, apesar do contato dos corpos. Embora tivesse bebido muito pouco, estava embriagado com aquela mentira, com o calor do universo fictício que tinha criado. Quando dizia que se matava, não pensava em tal, mas, como ela acreditava, ia entrando num mundo onde a verdade já não existia. Não era verdadeiro nem falso, mas vivido. E como não existiam, nem o passado que acabava de inventar para si nem o gesto elementar e suposto tão próximo sobre o qual se fundava a ligação com essa mulher, nada existia. O mundo tinha cessado de pesar sobre ele. Livre, já só vivia no universo romanesco que acabara de criar, forte pelo laço que estabelece toda piedade humana perante a morte. A sensação de embriaguez era tal que a mão lhe tremia. A mulher sentiu e julgou que era de angústia.
- Não havia meio de remediar... isso?
- Não.
O chapéu, pousado ao canto da mesa, parecia olhá-lo com ironia. Atirou-o para cima das almofadas, para o não ver mais.
- História de amor? Perguntou ela ainda.
Uma salva crepitou ao longe. “Como se não houvesse bastantes que terão de morrer esta noite”, pensou ela.
Ele levantou-se sem ter respondido. Ela julgou que a pergunta lhe chamara recordações à memória. Apesar da curiosidade, teve vontade de lhe pedir perdão, mas não se atreveu. Levantou-se também. Metendo a mão debaixo do bar, tirou de lá um embrulho (seringa, toalha) de entre dois frascos. Subiram.
Quando saiu (ele não se voltara, mas sabia que ela o seguia com o olhar, através da vidraça), nem o seu espírito nem a sua sensualidade estavam saciados. A bruma voltara. Depois de um quarto de hora de caminhada (o ar fresco da noite não o acalmava), parou diante de um bar português. Os vidros deste não estavam embaciados. Afastada dos clientes, uma morena magra, de olhos muito grandes com as mãos sobre os seios como que para os proteger, contemplava a noite. Clappique olhou-a sem se mover. “Sou como as mulheres que não sabem o que um novo amante obterá delas... Vamos suicidar-nos com aquela.”


André Malraux, A condição Humana