sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

André Malraux, A condição humana

- Leu a Alice no País das Maravilhas, querida?
Desprezava as mulheres, sem as quais não podia passar, o bastante para lhes chamar “querida”.
- Como pode duvidar disso? Sei-o de cor.
- O seu sorriso faz-me pensar no fantasma do gato que nunca se materializava, e do qual não se via senão um encantador sorriso de gato, flutuando no ar. Ah! Por que será que a inteligência das mulheres quer sempre escolher outro objeto além do seu próprio?
- E qual é o próprio, querido?
- O encanto e a compreensão, é evidente.
Ela refletiu.
- Os homens chamam assim à submissão do espírito. Vocês não reconhecem numa mulher senão a inteligência que os aplaude. É tão, tão repousante...
- Dar-se, para uma mulher, e possuir, para um homem, são os únicos meios que os seres tem de compreender seja o que for...
- Não acha, querido, que as mulheres não se dão nunca (ou quase) e que os homens não possuem nada? É um jogo: “Eu julgo que a possuo, portanto ela julga que é possuída...” Sim? Realmente? O que vou dizer é muito mal comparado, mas não acha que é a história da rolha que se julgava muito mais importante do que a garrafa?
A liberdade de costumes numa mulher excitava Ferral, mas a liberdade de espírito irritava-o. Sentiu-se ávido de fazer renascer o único sentimento que lhe dava vantagens sobre uma mulher: a vergonha cristã, o reconhecimento pela vergonha sofrida. Se ela não adivinhava, adivinhou que ele se separava dela, e, sensível por outro lado a um desejo físico que via crescer, divertida com a ideia de que podia atraí-lo à vontade, olhou-o, com a boca entreaberta (visto que ele amava o seu sorriso...) o olhar oferecido, certa de que, como quase todos os homens, ele tomaria por um abandono o desejo que ela tinha de o seduzir.
Ele juntou-se-lhe na cama. As carícias davam a Valérie uma expressão fechada que ele quis ver transformar-se. Apelava para a outra expressão com demasiada paixão para não esperar que a voluptuosidade a fixaria no roso de Valérie, crente de que destruía uma máscara, e que o que ela tinha de mais profundo, de mais secreto, era necessariamente o que ele preferia nela: só tivera relações com ela às escuras. Mas mal, com a mão, lhe afastou suavemente as pernas, ela apagou a luz. Ele reacendeu-a.
Procurara o interruptor às apalpadelas, e ela supôs um equívoco: apagou outra vez. Ele acendeu logo. De nervos muito sensíveis, ela sentiu-se, ao mesmo tempo, muito próxima do riso e da cólera: mas deu com o olhar dele quando afastara o interruptor, e teve a certeza de que ele esperava o mais evidente prazer da transformação sensual dos seus traços. Sabia que só era realmente dominada pela sexualidade no princípio de uma ligação, e de surpresa; assim que viu que não encontraria o interruptor, a tepidez que conhecia arrebatou-a, subiu-lhe ao longo do torso até os bicos dos seios, até os lábios, que adivinhou, pelo olhar de Ferral, intumescerem insensivelmente. Escolheu a tepidez, e, com as coxas e com os braços apertando-o contra ela, mergulhou em longas pulsações longe de uma margem, para a qual sabia que seria atirada, daí a pouco, com ela mesma, a resolução de não lhe perdoar.

Valérie dormia. A regular respiração e o abandono do dormir inchavam-lhe os lábios com doçura, e também com a expressão perdida eu lhe dava o gôzo. “Um ser humano”, pensou Ferral, “uma vida individual, isolada, única, como a minha...” Imaginou-se ela, habitando o seu corpo, sentido em seu lugar esse gôzo que ele não podia sentir senão como uma humilhação; imaginava-se ele mesmo, humilhado por aquela voluptuosidade passiva, por aquele sexo de mulher. “É idiota, ela sente em função do seu sexo, como eu em função do meu, nem mais nem menos. Ela sente como um nó de desejos, de tristeza, de orgulho, como um destino... É evidente.” Mas não naquele momento: o sono e os lábios entregavam-na a uma sensualidade perfeita, como se ela tivesse aceitado o não ser já um ser vivo e livre, mas apenas esta expressão de reconhecimento de uma conquista física. O grande silêncio da noite chinesa, como o seu cheiro de cânfora e de folhas, adormecido também até o Pacífico, cobria-a, fora do tempo: nem um navio chamava, nem um tiro se ouvia. Ela não arrastava para o seu sono recordações e esperanças que jamais possuiria, nada mais tinha senão o outro pólo do seu próprio prazer. Nunca vivera, nunca fora uma mocinha.
O canhão, outra vez: o comboio blindado recomeçava a atirar.


André Malraux, A condição humana