a minha mão escorre qual água lenta no dorso desse animal
outrora somente selvagem
agora selvagem e sagrado
um animal belíssimo
sangue puro como a água limpa que ele faz chorar em mim.
o sal das lágrimas provoca sede
de mais sangue.
mesmo que seja outro e não tão puro...
(a Água que chora lágrimas nos meus olhos também provoca saudade na Rosa. as colunas sociais dão notícia de um recente casal: a Rosa e a Mágoa. em priscas eras, eram outras duas: a Rosa e a Água. mas a Água — forte, universal e nômade — dançava com todas as flores, cores e coisas. A Rosa, precária, regionalmente localizada, existindo por fidelidade atávica e atada à sua própria terra, com raízes necessariamente fixas, não aguentou o que, para ela, eram traições e se casou com a Mágoa que, afinal, era só dela, da Rosa. a Mágoa, de semelhança com a primeira, só a aliteração, que fora, aliás, silenciada. a Água ficou triste mas, assim mesmo, continuou seu carnaval de confete e serpentina para cima de todas as coisas. e, vez por outra, inclusive, para cima da Rosa. a Mágoa, com ciúmes, aumentava de tamanho para defender seu amor pela Rosa. então, a Rosa, por não suportar nem ser infiel, nem o peso da Mágoa, desfolhava as suas pétalas. que até hoje morrem separadas e a seco. uma a uma. solteiras. sem ninguém para lhes ouvir as histórias de solidão.)
... no vão livre que se constrói enquanto penso tudo isso,
a minha mão continua a escorrer qual água benta
no dorso do meu marido
a minha mão-fonte: que nunca seque!
ou tinta, ou lágrima: eis minha sentença.
e eis minha oração no cárcere:
“dá-me um pouco de texto que escapo,
dá-me uma só palavra e não estarei a salvo.”
Camila do Valle