sábado, 19 de novembro de 2011

[18] - O livro do desassossego



Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever — dormir — que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?

Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir conosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um ato, uma realidade minha que me diferença deles. Na alma sou seu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas, e se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para Rua dos Douradores.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e Cia. será um dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irônica, mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
O livro do desassossego