quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Henry Graham Greene, Nosso homem em Havana


Podia distinguir a aproximação de Milly de longe, como a de um carro da polícia. Ao invés de sirenes, assobios o advertiam de sua chegada. Ela estava acostumada a vir à pé desde o ponto de ônibus, na Avenida da Bélgica, mas, aquele dia, os lobos pareciam estar agindo dos lados de Compostela. Ele tinha de admitir, com relutância, que não eram conquistadores perigosos. As homenagens que lhe eram tributadas desde os treze anos era, na verdade, de respeito, pois que, mesmo para os elevados padrões de Havana, Milly era linda.
Tinha cabelos cor de mel pálido, sobrancelhas negras, e seu penteado era modelado pelo melhor cabeleireiro da cidade. Não dava atenção aos assobios, que a faziam apenas andar com mais aprumo: vendo-a caminhar, a gente quase acreditava em levitação. Agora, o silêncio ter-lhe-ia parecido um insulto.
Ao contrário de Wormold, que não acreditava em nada, Milly era católica: ele tivera de prometer à sua mãe, antes do casamento, que assim seria. Agora a mãe, pensava ele, não tinha fé alguma, mas deixara-lhe uma católica nas mãos. Isso fez com que Milly se aproximasse mais de Cuba do que ele jamais pudera fazer. Wormold acreditava que, nas famílias ricas, ainda persistia o costume de manter-se uma aia e, às vezes, parecia-lhe que também Milly tinha uma aia junto de si, invisível a todos os olhos, menos aos dela. Na igreja, onde parecia mais encantadora do que em qualquer outro lugar, em sua mantilha leve como uma pena, bordada com folhas transparentes como o inverno, a aia estava sempre sentada a seu lado, para observar se as suas costas se mantinham eretas, se cobria o rosto no momento adequado e se fazia corretamente o sinal-da-cruz. Os meninos de pouca idade podiam, impunemente, chupar balas em torno dela ou abafar risinhos atrás dos pilares, mas ela se portava com a rigidez de uma freira, seguindo a missa em seu pequeno missal de corte dourado, encadernado em marroquim da cor de seus cabelos. (Ela própria o escolhera.). A mesma aia invisível se encarregava de ver se comia peixe às sextas-feiras, jejuava na semana de Têmporas e ia à missa não apenas aos domingos e nos dias de festividades especiais da Igreja, mas também no dia de seu santo onomástico.Milly era como a chamavam em casa, mas o nome que lhe deram era Serafina - em Cuba, "un doble de segunda clase", frase misteriosa que lembrava a Wormold uma pista de corridas.
Havia já muito tempo, Wormold percebera que a aia nem sempre estava a seu lado. Milly era meticulosa em sua maneira de portar-se durante as refeições e jamais negligenciava as suas orações noturnas, como ele bem podia saber, pois desde a infância ela o fazia esperar, diante da porta de seu quarto, como não-católico que era, até que terminasse suas preces.
Uma luz ardia sem cessar diante da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Ele se lembrava de tê-la ouvido dizer, quando contava quatro anos de idade, em suas orações: "Ave maria, muito birrenta".
Um dia, porém, quando Milly tinha treze anos, foi convidado a comparecer à escola do Convento das Irmãs Americanas de Santa Clara, situada no rico subúrbio de Vedado. Lá  ficou sabendo, pela primeira vez, de que maneira a aia abandonara Milly junto à placa da instituição religiosa, que se via ao lado do portão gradeado da escola. A queixa era muito séria: havia ateado fogo a um menino chamado Thomas Earl Parkman Júnior. (...) Havia também a questão de ela haver fumado em segredo. (...)
Milly chegava exatamente na hora. Era sempre difícil para Wormold disfarçar a impressão que sua beleza lhe causava, mas a aia invisível o fitava friamente, como se ele fosse um pretendente indesejável. Fazia agora muito tempo desde que a aia entrara em férias pela última vez. - e ele quase lamentava a sua assiduidade, e, às vezes, teria gostado de ver Earl arder novamente. Milly rendeu a sua ação de graças e persignou-se, e ele permaneceu respeitosamente de cabeça baixa até que terminasse. Era uma de suas longas ações de graças, o que significava, provavelmente, que não tinha fome ou estava ganhando tempo.
- Teve um dia agradável, papai? - perguntou delicadamente.

Henry Graham Greene, Nosso homem em Havana