sexta-feira, 2 de setembro de 2011

imagem: dominique lièvre

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis

do ar

quando Jandira penteava a cabeleira...
Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
da cabeça aos pés,
todas as partes do mecanismo tinham

importância.

E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de

Jandira

E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal.
E apareceram cadáveres boiando por causa de

Jandira.

Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda

de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força

das máquinas;

Não caía nem um fio,
nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.
E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de

Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os

seios.

À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o
princípio do tempo.
E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a

cidade

E que ele fique ali à toa.
E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.

E Jandira não morre,

Espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e

transparente.


Murilo Mendes