... você está casado, Mathieu – disse ele com força.
- Isso é novidade – disse Mathieu.
- Sim, está casado, só que pretende o contrário por causa de suas teorias. Adquiriste hábitos com essa mulher. Quatro vezes por semana vais tranquilamente encontrá-la e passas a noite com ela. E isso dura há sete anos. Não tem mais nada de aventura. Você a estima, sente que tem obrigações para com ela, não a quer abandonar. Estou certo de que não procuras unicamente o prazer; por maior que tenha sido, deve ter-se embotado. Na realidade, deves sentar-te à noite junto dela e contar longamente os acontecimentos do dia, pedir conselhos nos momentos difíceis.
- Evidentemente – disse Mathieu, erguendo os ombros.
- Pois bem, podes dizer-me em que isso difere do casamento? O fato de não morarem juntos? (...) com isso você ganha a comodidade, uma aparência de liberdade. Tens todas as vantagens do casamento e aproveitas os princípios para recusar os inconvenientes. Recusas regularizar a situação, o que é muito fácil e cômodo, pois, se alguém sofre, não é você. (...) Sabes o que não entendo? Você, tão disposto sempre a profligar uma injustiça, você humilha essa mulher há anos, pelo mero prazer de afirmar que estás de acordo com teus princípios. Se realmente subordinasses tua vida a tuas ideias! Mas eu te repito, estás casado, tens um apartamento agradável, recebes bons vencimentos em dia certo, não tens nenhuma inquietação quanto ao futuro, porque o Estado te garante uma aposentadoria. E gostas dessa vida calma, regrada, uma vida de funcionário.
- Escuta – disse Mathieu - , há um mal-entendido entre nós; pouco me importa ser ou não burguês, O que eu quero, apenas... – acabou a frase entre os dentes - é conservar a minha liberdade.
- Eu imaginava – disse Jacques – que a liberdade consistia em olhar de frente as situações em que a gente se meteu voluntariamente e aceitar as responsabilidades. Não é por certo tua opinião: condenas a sociedade capitalista, e, entretanto, és funcionário nessa sociedade. Proclamas uma simpatia de princípio pelos comunistas, mas tens cuidado em não te comprometeres. Nunca votaste. Desprezas a classe burguesa e, no entanto, és um burguês, filho e irmão de burgueses, e vives como um burguês.
Mathieu fez um gesto, mas Jacques não se deixou interromper.
- Estás, no entanto, na idade da razão, meu caro Mathieu – disse com uma piedade ralhadora. – Mas isso você também o esconde, quer fazer-se de mais moço. Aliás... talvez seja injusto. Talvez não tenhas ainda a idade da razão, é uma idade moral, a que cheguei antes de ti. (...) você nada mais tem de mocinho, não te vai bem a vida boêmia. Aliás, o que é isso, a boemia? Era muito divertido há cem anos, agora... um punhado de desajustados sem perigo para ninguém e que perderam o trem, simplesmente. Você está na idade da razão, Mathieu, está ou deveria estar – repetiu distraidamente.
**********
És livre. Mas para que te serve a liberdade, se não para tomar posição? Você gastou trinta e cinco anos na sua limpeza e o resultado dela é um vácuo. És um corpo estranho, sabes? – continuou com um sorriso amigo. – vives no ar, cortaste os laços burgueses e não te ligaste ao proletariado, flutuas, és um abstrato, um ausente. Não deve ser muito divertido, todos os dias...
(...)- Você renunciou a tudo para ser livre. Dê mais um passo, renuncie à própria liberdade. E tudo te será devolvido.
(...)
- Você é bem real – disse Mathieu. - Tudo aquilo que você toca parece real. Desde que entraste no meu quarto ele parece verdadeiro e me enoja.
Acrescentou subitamente:
- És um homem.
- Um homem? – indagou Brunet, surpreso. – O contrário fora inquietante. Que quer dizer com isso?
- Nada, a não ser que escolheste ser um homem.
Um homem de músculos fortes e elásticos, que pensava por meio de curtas e severas verdades, um homem reto, sóbrio, seguro de si, terreno refratário às angélicas tentações da arte, da psicologia, da política, um homem inteiriço, um homem apenas. E Mathieu ali estava, diante dele, indeciso, mal envelhecido, mal cozido, assediado por todas as vertigens do inumano. E pensava: “Eu não pareço um homem”.
Brunet levantou-se.
- Pois faze como eu – disse. – que te impede de fazê-lo? Ou imaginas que poderás viver a vida inteira entre parênteses?
(...)
Vocês são todos iguais, vocês, os intelectuais. Tudo desmorona, os fuzis vão disparar sozinhos e vocês, serenos, reivindicam o direito de ser convencidos. Ah! Se ao menos você pudesse ver-se com meus olhos, compreenderia que não se pode perder tempo. (...) Finges lamentar o teu ceticismo, mas não te desfazes dele. É teu conforto moral. Quando o atacam, a ele te apegas avidamente.
(...)
Não tenho nada a defender; não me envaideço de minha vida e não tenho um níquel. Minha liberdade? Ela me pesa. Há anos que sou livre à toa. Morro de vontade de trocá-la por uma convicção. De bom grado trabalharia com vocês, isso me afastaria de mim mesmo e tenho necessidade de me esquecer um pouco. E depois, penso como você que não se é homem enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer.
(...)
...quero permanecer livre. É o que posso dizer. Mas posso dizer também: tive medo, prefiro minha cortina verde, prefiro tomar ar, à tarde, no meu balcão, e não desejaria que isso mudasse. Agrada-me indignar-me contra o capitalismo, mas não desejo que o suprimam, porque não teria mais motivos de indignação. Agrada-me sentir-me desdenhoso e solitário de indignação. Agrada-me dizer “não”, sempre “não”, e teria medo que se construísse um mundo viável porque teria que dizer “sim” e fazer como os outros. Por cima ou por baixo: quem julgaria?
Jean-Paul Sartre, A Idade da razão