Verão. O ar estava morno e denso. Mathieu caminhava pelo meio da rua, sob um céu de um azul límpico. Seus braços remavam, e era como se abrissem pesadas cortinas de ouro. Verão. O verão dos outros. Para ele um dia sombrio começava. (...) “Verão!” O céu assombrava a rua, era um fantasma mineral; os transeuntes flutuavam no céu e seus rostos flamejavam. Mathieu respirou um cheiro vivo, de poeira nova. Piscou e sorriu. Verão! Deu alguns passos; o asfalto escuro e mole, marcado de pontos brancos, colou-se à sola de seus sapatos. Marcelle estava grávida. Não era mais o mesmo verão. (...) “Estou velho. Eis-me arriado em cima de uma cadeira, comprometido até o pescoço na vida e não acreditando em nada. (...) Estou aqui, saboreio-me, um gosto desconhecido de sangue e água ferruginosa, meu gosto, eu sou meu próprio gosto, eu existo. Existir é isso: beber-se a si próprio sem sede.Trinta e quatro anos. Há trinta e quatro anos que eu me saboreio, e estou velho. Trabalhei, esperei, tive o que queria: Marcelle, Paris, independência. Está tudo acabado. Não quero mais nada. (...) “ Assim é que eles me vêem, eles, Marcelle, Daniel, Brunet, Jacques. O homem que quer ser livre. Come, bebe, como qualquer outro, é funcionário, não faz política, lê L’Oeuvre e Le Populaire e está em dificuldades financeiras. Mas quer ser livre, como outros desejam uma coleção de selos. A liberdade é seu jardim secreto. Sua pequena conivência para consigo mesmo. Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, razoável no fundo, que malandramente construiu pra si próprio uma felicidade medíocre e sólida, feita de inércia, e que ele justifica de quando em vez mediante reflexões elevadas. Não é isso que eu sou?”
Tinha dezesseis anos. Era um animal, um estúpido. Estava deitado na areia em Arcachon, contemplava as ondas compridas e chatas do oceano. Acabara de sovar um jovem bordelês que lhe jogara pedras. Ele o obrigara a comer areia. Sentado à sombra dos pinheiros, arquejante, as narinas cheias de odor da resina, tivera a impressão de ser uma pequena exploração suspensa no ar, redonda, abrupta, inexplicável. Dissera a si mesmo: “Serei livre”; ou antes, não dissera coisa alguma, mas era o que quisera dizer, e fora uma aposta, uma promessa. Apostara que toda a sua vida se pareceria com aquele momento excepcional. Tinha vinte e um anos, lia Spinoza no seu quarto, e era terça-feira de carnaval. Grandes carros multicores passavam na rua, cheios de bonecos de papelão. Erguera os olhos e apostara de novo, com aquela ênfase filosófica que lhe era agora peculiar, a ele e a Brunet: “Eu me salvarei”. Dez, cem vezes ele tornara a fazer a aposta. As palavras mudavam com a idade e as modas intelectuais, mas era uma só e mesma aposta. E a seus próprios olhos Mathieu não era um sujeito pesadão que ensinava filosofia a rapazes num ginásio, nem o irmão de Jacques Delarue, o advogado, nem o amante de Marcelle, nem o amigo de Daniel e Brunet. Era unicamente aquela aposta.
“Que aposta?” Pousou a mão sobre os olhos cansados de luz. Já não sabia mais. Tinha agora – dia a dia mais amiudados – longos momentos de exílio. Para compreender sua aposta precisava estar nos seus melhores dias.- Bola, faz favor.
Uma bola de tênis rolou-lhe aos pés, um menino corria atrás com a raqueta na mão. Mathieu apanhou a bola e lançou-a ao garoto. Por certo não estava num desses dias. Vegetava naquele calor abafante, sofria a velha e monótona sensação do cotidiano. Inutilmente repetia as frases que o exaltavam antes: “Ser livre. Ser a causa de si próprio, poder dizer: sou porque quero; ser o próprio começo”. Eram palavras vazias e pomposas, palavras irritantes de intelectual.
Levantou-se. Levantava-se um funcionário, um funcionário em dificuldades financeiras e que ia encontrar-se com a irmã de um de seus ex-alunos. Pensou: “Estará tudo acabado? Serei apenas um funcionário?” Esperara tanto tempo. Seus últimos anos tinham sido uma vigília. Esperara através de mil e uma preocupações cotidianas. Naturalmente, durante esse tempo andara atrás de mulheres, viajara e ganhara a vida. Mas através de tudo isso sua única preocupação fora manter-se disponível. Para uma ação. Um ato. Um ato livre e refletido que acarretaria o destino de sua vida e seria o início de uma nova existência. Nunca pudera amarrar-se definitivamente a um amor, a um prazer, nunca fôra realmente infeliz; sempre lhe parecera estar alhures, ainda não nascido completamente. Esperava. E enquanto isso, devagar, sub-repticiamente, os anos tinham chegado, e o haviam envolvido. Trinta e quatro anos. “Com vinte e cinco é que eu deveria ter-me comprometido. Como Brunet. Sim, mas nessa idade não se tem plena consciência do que se faz. Vai-se na onda. Eu não queria ir na onda. Pensava partir para a Rússia , abandonar os estudos, aprender um ofício. O que cada vez o retivera fôra a ausência de motivos para fazê-lo. Sem motivos a decisão teria sido uma burrada. Continuaria a esperar.
Barquinhos a vela giravam no tanque, açoitados de quando em vez pelo repuxo. Parou para olhar o carrossel náutico. Pensou: “Não espero mais. Ela tem razão. Estou liquidado. Esvaziei-me, esterelizei-me para ser apenas uma espera. Agora estou vazio. Mas não espero mais nada”
Junto do repuxo um barquinho parecia perdido, inclinava-se, afundava lentamente. Todos riam. Um guri tentava salvá-lo com uma vara...
Jean-Paul Sartre, A Idade da Razão